Os acontecimentos de 8 de janeiro em Brasília não permitem uma interpretação rasa. Com isso quero dizer que não opino fugazmente sobre o ocorrido, dizendo que todas aquelas pessoas, algumas com filhos no colo, seriam capazes de atos classificados de terroristas por alguns.
O primeiro questionamento que faço é por que, depois de mais de 60 dias acampados em frente aos quartéis, dia e noite, debaixo de chuva e de sol, eles não haviam já feito algum tipo de arruaça como a que vimos na televisão no dia 8?
Acredito que isso possa ser respondido a partir de duas premissas distintas.
A primeira seria que, dentre aquela quantidade de pessoas acampadas, – um agrupamento de anônimos em princípio de boa-fé, de todos os cantos do Brasil – algumas vieram a ajuntar-se com o objetivo de instigar aquele povo pacífico a tomar atitudes violentas. Isso não seria impensável, porque já ocorreu em outras manifestações, tendo os conhecidos Black Blocs como exemplo.
Essa premissa ganha plausibilidade quando se leva em conta que esses grupos se movem por ideologias simpáticas ao presidente recém-empossado, que sempre se reconheceu como de esquerda. Assim, a administração teria facilidade de auferir um lucro político imediato, acusando parte da sociedade de terrorista ou de atentar contra as instituições democráticas.
Isso seria particularmente útil ao Executivo no momento, porque o governo não tinha maneira de lidar com manifestantes pacíficos que, ordeiros, silenciosos e munidos apenas de cartazes, iam minando a legitimidade da atual gestão. Esta hipótese ganha reforço com a última pesquisa de confiança no governo divulgada antes dos episódios, quando o governo Lula, após uma semana de efetivação, tinha números praticamente idênticos ao do governo Bolsonaro após a derrota nas eleições.
A segunda hipótese, que considero mais provável, é a da saturação dos brios democráticos e tolerantes daqueles que protestavam. Ânimos que eram sucessivamente atingidos por decisões judiciais, no estilo Lawfare, proferidas pelo Ministro Alexandre de Moraes.
O ministro parece que adota a estratégia de Lawfare desde antes das eleições. Não olvidava em quebrar sigilos diretos de pessoas que têm simpatia por uma determinada linha política. Com o fim da apuração eleitoral, ele intensificou a atuação. Recentemente, aqueles que tiveram uma mera conversa com algum dos (abstratamente considerados) abstratos suspeitos corriam risco de ser investigados. Além disso, o ministro decidia mandar bloquear contas de redes sociais de quem a autoridade suspeitasse, por terem proferido palavras criticando a atuação das instituições.
Com o avançar dessa insegurança democrática, mais e mais pessoas chegaram para acampar em frente aos quartéis, crendo ver ali o último recurso.
Isso, sem falar do ovo da insatisfação: o sistema eleitoral. Aquelas pessoas não sentiam legitimidade no sistema, que, por coincidência, elegeu o candidato apoiado pela elite progressista ou revanchista, cujo ódio a Bolsonaro não permitia que se referisse a ele por menos que genocida.
Aqui está a causa dos acampamentos e das manifestações. A premissa seria a ruptura social e psicológica entre o estamento dominante e as massas dominadas.
Esse rompimento foi acelerado pelas redes sociais, cujo grande mérito é levar pontos de vistas diferentes e plurais a todas as pessoas de norte a sul do país.
Sinteticamente, a elite dominante antes tinha a força de um leão, porque o que falava era a verdade absoluta, divulgada por formadores de opinião.
Na nova modernidade da tecnologia, os “Tios e Tias do Zap”, com ingenuidade simplória, tal qual uma raposa, passaram a questionar pelas redes sociais os “dogmas” que eram impostos por aquela, levando o formadores de opinião perderem a glória de inteligentes.
O resultado foi que os questionamentos inocentes de pessoas comuns, de donas de casa e de despretensiosos cidadãos se tornaram virais e eram ouvidos e repercutidos por muitas outras pessoas. Daí vermos as “Tias do Zap” conquistarem também o status de formadores de opinião, concorrendo com analistas da grande mídia.
A síntese dessa nova conformação social foi o surgimento de dois povos, cada um com sua linguagem: a elite progressista, hoje nem tão dominante, e a massa, que usa o senso comum, como uma ferramenta de filtro do que ouve.
A índole e o senso comum da massa é tradicionalmente pacífica, mas não significa que seja passiva.
É importante considerar que controlar uma massa de milhares de pessoas, sem relação de intimidade entre si, sentindo-se sem líder e ofendida de golpista pela elite velha, pode levar a um transbordamento popular.
Basta apenas um a instigar uma ação mais violenta, que aquele cidadão pacato acaba sendo levado a agir irracionalmente como um Homem-Massa.
A psicologia das massas mostra que a individualidade se dissolve no bando e o indivíduo tem a percepção da realidade alterada. Não percebe o furioso comportamento.
A definição de Homem-Massa foi muito bem feita por Ortega y Gasset. Ele dizia que o homem quando está em bando, por mais que seja inteligente, tem a sua capacidade intelectual e moral reduzida à média de todos. Isso explicaria o porquê de as pessoas até antes pacíficas e ponderadas chegarem àquele momento de fúria.
Como um barulho de canhão, depois da arruaça, as pessoas de todo o Brasil saíram da hipnose coletiva e iniciaram a retirada das posições que guardavam por meses espontaneamente.
Ironia ou avanço totalitário foi o fato de que a maioria dos manifestantes presos – ou melhor, levados a um ginásio onde se concentrou a tomada de depoimentos – foram justamente os que não avançaram com fúria na Esplanada dos Ministérios, por temerem confusão, permanecendo pacificamente acampados.
O governo e o Judiciário conseguiram reestabelecer a ordem. A imprensa saudou loas às ameaças repressivas por causa da loucura coletiva.
Seguiu-se um silêncio nas redes sociais após a elite dominante receber um fôlego. As ações repressivas e o achincalhe moral de todos os conservadores não decretaram o fim deles. Pode-se imaginar que o pote continua cheio de mágoas.