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Reflexões sobre a ressurreição digital a partir de deepfakes

Em um mundo cada vez mais digital e avançado tecnologicamente, a utilização de deepfakes (imagens ultrarrealistas criadas digitalmente).[1], especialmente quando se trata da recriação digital de pessoas falecidas, levanta controvérsias éticas e jurídicas que exigem uma análise cuidadosa e uma legislação adequada. A ausência de um regramento jurídico específico no Brasil torna a discussão ainda mais sensível, abrindo espaço para divergências e incertezas.

A evolução tecnológica tem oferecido a possibilidade de recriar digitalmente figuras históricas e ídolos do passado, permitindo que eles apareçam novamente em obras, museus e até mesmo propagandas. Isso pode ser considerado um avanço criativo e de entretenimento, mas também uma afronta aos princípios éticos que envolvem  o consentimento, a identidade e a sensibilidade dos fãs e familiares das pessoas retratadas.

O recente caso do comercial da Volkswagen, em que a imagem da cantora Elis Regina foi recriada digitalmente para uma peça publicitária, gerou intensa mobilização social e uma representação ética por parte do Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar) após o recebimento de inúmeras notificações e denúncias. Como aponta a nota do Conselho, questiona-se a eticidade da campanha à luz do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária e seus princípios, além do respeito à veracidade e personalidade da artista, bem como a possibilidade de confundir ficção com realidade, principalmente entre crianças e adolescentes. Este último aspecto demonstra a relevância de uma regulamentação que exija avisos claros e ostensivos quando um conteúdo for criado por meio de Inteligência Artificial.

Deve-se se ressaltar, contudo, que a ressurreição digital não é algo novo ou pontual. Há diversos exemplos de recriação digital de artistas póstumos na indústria do entretenimento, como o do artista espanhol Salvador Dalí, no museu dedicado a ele em São Petersburgo, na Flórida; da atriz Carrie Fisher, recriada digitalmente para aparecer como a jovem Princesa Leia, no filme Star Wars; e do ator Paul Walker no filme Velozes e Furiosos 7.

Não menos importante são os diversos aspectos jurídicos envolvidos, como os direitos autorais dos intérpretes, a imagem do artista recriado e a titularidade das criações produzidas a partir da inteligência artificial. Definir a quem pertence o direito de autorizar a utilização de deepfake e até que ponto essas recriações podem ser realizadas são questões cruciais a serem contempladas na legislação.

É importante mencionar que o direito de imagem é garantido pela Constituição Federal (Artigo 5º, inciso X) e pelo Código Civil (Artigo 20). É um direito fundamental que proíbe o uso não autorizado da imagem de alguém, especialmente quando prejudica sua honra, boa-fama ou é com fins comerciais. Os parágrafos únicos do art. 12 e do art. 20 do Código Civil brasileiro de 2002[2] tratam da legitimidade para ação indenizatória contra violação ao direito da personalidade após a morte. Por sua vez, a lei de direitos autorais (lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998) cuida da transmissão aos sucessores dos direitos morais do autor (art. 24)[3] e do lapso temporal de 70 anos para os herdeiros explorarem os direitos patrimoniais do autor subsequente ao seu falecimento (art. 41).

Observa-se, porém, que tais dispositivos não abarcam as diversas variáveis incidentes sobre a recriação digital de pessoas mortas e novas obras produzidas a partir delas. Por isso, a legislação brasileira precisa acompanhar o desenvolvimento tecnológico e abordar de forma mais clara e específica as implicações legais e éticas trazidas pela ressurreição digital, garantindo que os direitos do artista e o legado sejam preservados de forma justa e adequada.

A obra “A Quarta Revolução Industrial”, de Klaus Schwab, argumenta que a evolução tecnológica impacta não apenas a economia, mas também a identidade individual. As transformações decorrentes dessas inovações exigem uma adaptação contínua, e a resistência à mudança, muitas vezes, advém da diferença de gerações que lidam de formas distintas com o mundo digital. Nesse contexto, as questões éticas que envolvem a recriação digital de pessoas póstumas ampliam ainda mais as divergências na sociedade e influenciam o mundo da tecnologia mais que outras forças, uma vez que a avaliação do que é bom, certo e aceitável molda a opinião pública e os hábitos de consumo que muito interessam ao mercado.

Encontrar um equilíbrio entre o avanço tecnológico, a proteção dos direitos individuais e a preservação da ética é um desafio que deve ser enfrentado pela sociedade como um todo. A definição de um marco regulatório para o uso de deepfakes tem se mostrado essencial para garantir a proteção dos direitos das pessoas e evitar abusos.

Neste particular, desde que o comercial em questão foi ao ar, foram propostos dois projetos de lei para regular o emprego de deepfakes de pessoas mortas. Um deles é o PLl 3592/2023, que estabelece diretrizes para o uso de imagens e áudios de pessoas falecidas por meio de inteligência artificial (IA), com o intuito de preservar a dignidade, a privacidade e os direitos dos indivíduos mesmo após sua morte. O outro é o PL 3608/2023, que estabelece diretrizes para o uso de deepfakes pós-morte.

As duas proposições são semelhantes, mas se distinguem no que se refere ao consentimento. Enquanto a primeira requer a concordância prévia e expressa da pessoa em vida ou, na ausência desta, dos familiares mais próximos, a segunda proposta demanda o consentimento prévio e expresso da pessoa em vida, bem como o atendimento aos princípios da finalidade e adesão à identidade original. Há que se ressaltar que, no marco legal sobre inteligência artificial que se discute no Senado Federal, não há menção específica à recriação de pessoas falecidas.

Além disso, o julgamento do caso pelo Conar será emblemático para indicar como órgãos reguladores tratarão de questões tão complexas no futuro, pois a tecnologia continuará a avançar e a utilização de deepfakes se tornará mais comum em nosso dia a dia.

Para concluir, considero que o principal produto obtido com o comercial da Volkswagen tenha sido a necessidade de discussão sobre os limites da inteligência artificial e suas bases, visando a construção de uma legislação que seja ética, justa e atualizada para lidar com os desafios impostos pela ressurreição digital a partir do deepfake.

Como aponta Luciano Floridi, filósofo italiano conhecido pelo seu trabalho pioneiro no campo da Filosofia da Informação e da Ética da Informação, o verdadeiro desafio deste século não é mais a inovação digital, mas a sua governança. Precisamos entender que tipo de sociedade da informação pretendemos construir diante da natureza imparável e inalcançável da inovação tecnológica.  Somente assim poderemos aproveitar os benefícios criativos dessa tecnologia sem comprometer valores fundamentais da nossa sociedade moderna.

REFERÊNCIAS

DAMANICO, G. F. Ressurreição digital – Curitiba: Gedai, UFPR, 2021.

FLORIDI, L. Soft Ethics and the Governance of the Digital. Philosophy & Technology, v. 31, n. 1, p. 1–8, 17 fev. 2018.

SCHWAB, K. A Quarta Revolução Industrial. [s.l.] Edipro, 2019.

WACHOWICZ, M.; D’AMICO, G. F. As performances criadas por inteligência artificial: o reflexo dos algoritmos na ressurreição digital. Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, v. 2, n. 3, p. 17–37, 12 set. 2022.


[1] O nome deepfake é um produto da junção das expressões deep learning (referência ao machine learning) e fake (falso) (WACHOWICZ; D’AMICO, 2022).

[2] ​​Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

….

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. (Vide ADIN 4815)

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

[3] Art. 24. São direitos morais do autor:

I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;

II – o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;

III – o de conservar a obra inédita;

IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;

V – o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada;

VI – o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem;

VII – o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado.

§ 1º Por morte do autor, transmitem-se a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV.

§ 2º Compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público.

§ 3º Nos casos dos incisos V e VI, ressalvam-se as prévias indenizações a terceiros, quando couberem.

Autor

  • Stefani Juliana Vogel

    Presidente suplente do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais (CNPD). Membro da IAPP (Associação Internacional de Profissionais de Privacidade). Mestre em Alta Segurança Internacional pela Universidade Carlos III, na Espanha