1. O CONTEXTO
O PL 2630/2020, que pretende instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e
Transparência no Brasil e ficou conhecido como Projeto de Lei das Fake News, é uma iniciativa
regulatória que visa controlar o fenômeno de disseminação de notícias falsas ou da
desinformação. A proposta em análise, que tem como objetivo estabelecer no Brasil um
maior controle sobre o conteúdo compartilhado nas redes sociais, acompanha um
movimento mundial de debates sobre regular a relação entre plataformas e usuários.
Recentemente, o PL foi alvo de grande interesse e debate público ao ter o seu requerimento
de urgência aprovado. No entanto, desde que foi pautado para votação no plenário da
Câmara dos Deputados, mais e mais análises críticas sobre seus pontos polêmicos têm
surgido, acompanhadas de movimentos contrários à proposta apresentada.
É importante ressaltar que não é a primeira vez que o Brasil está diante de uma proposta de
regulação para combater a desinformação. Em 2018, já havia 20 projetos de lei
relacionados ao tema em tramitação no Congresso Nacional, conforme reportagem da
Agência Pública.
No caso do atual PL 2630/2020, existe um consenso sobre a sua sensibilidade e quanto à
falta de clareza em diversos de seus pontos, como as regras relacionadas à moderação de
conteúdo, conceitos e definições afetos ao tema e os possíveis impactos à liberdade de
expressão, consequentes das regras de moderação e remoção de conteúdo. Um total de 85
emendas foram propostas, indicando a necessidade de um debate mais aprofundado sobre
o assunto.
Neste artigo, pretendo abordar a complexidade do fenômeno da desinformação, bem como
sobre a possível tensão existente entre o PL 2630/2020 e a Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais (LGPD), instituída pela Lei 13.079/2018.
Desde que o PL 2630/2020, de autoria do senador Alessandro Vieira, foi protocolado no
Senado, sua tramitação foi permeada de ajustes no texto e campanhas realizadas nas
redes sociais que pediam a sua suspensão. Na Câmara, o seu relatório foi apresentado
pelo deputado Orlando Gomes em 27 de abril de 2023, consistindo em um extenso
documento com mais de 100 páginas que aborda o histórico e as discussões relacionadas à
medida na Casa. Do referido documento se extrai que ao longo desse processo iniciado em
2010, foram realizados ciclos de debates públicos, audiências públicas e reuniões nas três
Comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, Finanças e Tributação e
Constituição e Justiça e de Cidadania.
2. O PANO DE FUNDO
Como mencionado, ao longo do processo de tramitação no Congresso Nacional, o projeto
sofreu modificações significativas em seu conteúdo. Além disso, o debate em âmbito
internacional também repercutiu sobre as discussões realizadas no Brasil, especialmente
com a aprovação de duas leis de grande repercussão na União Europeia: o Digital Services
Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA), no meio do ano de 2022. Essas legislações do
bloco europeu se tornaram marcos importantes e influenciaram as decisões tomadas
durante o processo de revisão da proposta.
Dentre essas discussões, destaco a 6a audiência pública, ocorrida em 24 de agosto de
2021, com o tema “Como identificar agentes maliciosos sem ferir a proteção de dados?”.
Nesse evento, foram abordadas preocupações relevantes sobre a proteção de dados
pessoais no contexto do PL 2630/2020.
Para viabilizar o seu modelo de negócios, as plataformas digitais precisam tratar uma
grande quantidade de dados, incluindo dados pessoais dos usuários. Desse modo,
identificam-se diversos pontos de contato entre a moderação de conteúdo e a proteção de
dados pessoais.
Não há dúvidas de que a eventual proposta que se proponha a estabelecer balizas para a
moderação de conteúdo na esfera digital deva levar em consideração as preocupações
relacionadas à proteção de dados pessoais, bem como os princípios da privacidade,
liberdade de expressão e acesso à informação. Faz-se necessário buscar um equilíbrio
entre o combate à desinformação e a preservação dos direitos fundamentais dos cidadãos.
3.POR QUE UMA REGULAÇÃO?
Estamos inseridos na era digital, imersos em um ambiente virtual com bilhões de
transações diárias, interações e downloads, que possibilitam o compartilhamento, coleta,
análise e disseminação generalizada de dados dos consumidores por empresas,
organizações e governos ao redor do mundo.
Diante desse cenário, é preocupante considerar os resultados de uma pesquisa de
fidelidade ao cliente realizada pela PWC, na qual 82% dos consumidores entrevistados
afirmam estar dispostos a compartilhar algum tipo de dado pessoal em troca de uma melhor
experiência do cliente. Afinal, quando os consumidores compartilham informações pessoais,
eles fornecem dados valiosos sobre si mesmos, como preferências, comportamentos e
histórico de compras. A ausência de regras nesse sentido pode desencadear no uso destes
dados de maneira não autorizada ou não ética. Isso pode incluir a venda de dados para
terceiros, direcionamento de publicidade invasiva ou até mesmo, manipulação
comportamental.
É certo que a vida digital é irreversível e, nesse contexto, há vantagens e desvantagens.
Por um lado, somos atraídos pelos benefícios de eficiência e conveniência ao receber
conteúdos personalizados por meio de recomendações baseadas no uso de algoritmos.
Elas facilitaram o comércio transfronteiriço, permitindo que pessoas ao redor do mundo
tenham acesso a uma ampla gama de produtos e serviços. Além disso, essas tecnologias criaram oportunidades para empreendedores e pequenas empresas, democratizando o
acesso ao mercado e impulsionando o crescimento econômico.
Por outro, surgem preocupações, muitas das quais foram destacadas no documentário “O
Dilema das Redes”, em relação ao uso ético desses algoritmos pelas plataformas de mídia
social e outras questões relacionadas à transparência, como a opacidade, isto é, a pouca
visibilidade ou controle por parte dos usuários sobre como suas informações pessoais são
utilizadas e como os conteúdos são selecionados e exibidos em suas redes sociais e o
profiling 1.
Ademais, soma-se a essa ponderação a existência de desinformação ou notícias falsas,
popularmente conhecidas como “fake news”. Embora não definidas no âmbito do PL
2630/2020, as fake news se caracterizam pelo compartilhamento de conteúdo com o
objetivo de induzir o público ao erro, manipular opiniões, causar confusão ou obter ganhos
pessoais, políticos ou outros benefícios.
A desinformação no ambiente digital pode assumir várias formas, como notícias falsas,
boatos, teorias da conspiração, manipulação de imagens ou vídeos, criação de contas
falsas ou bots para amplificar determinadas narrativas, entre outras estratégias. Ela pode
ser disseminada por indivíduos mal-intencionados, grupos organizados ou até mesmo por
meio de campanhas coordenadas com interesses específicos.
Ao longo dos últimos anos, observamos uma crescente conscientização por parte de
diversos governos democráticos sobre os danos sociais causados pela disseminação de
conteúdos falsos ou maliciosos em redes sociais e mídias digitais em geral. Isso tem levado
a um apoio cada vez maior a iniciativas regulatórias com o objetivo de enfrentar esse
problema. Essas medidas visam proteger os cidadãos, preservar a integridade da
informação e promover um ambiente digital mais seguro e confiável.
Apesar de a regulação se mostrar como abordagem necessária, trago uma ponderação.
Diante dos desafios apresentados pelas novas dinâmicas de comunicação e pelo poder de
alcance dessas plataformas, ela em si não basta. Tal problema requer uma abordagem
holística, a partir de uma visão mais abrangente e integrada; isto é, requer
acompanhamento de outras ações que atuem na fase de prevenção da desinformação.
Nesse sentido, diversas medidas são reconhecidas como eficazes. A educação midiática e
a alfabetização digital desempenham um papel fundamental. Investir na educação desde as
primeiras etapas do ensino capacita as pessoas a desenvolver habilidades críticas de
avaliação da informação, a identificar fontes confiáveis, a verificar fatos e a discernir entre
informações verdadeiras e falsas2.
Além disso, a verificação de fatos e a checagem de fontes são aspectos cruciais no
combate à desinformação. Agências especializadas nesse tipo de apuração desempenham
um papel importante ao analisar e verificar a precisão das informações divulgadas,
promovendo a transparência e a confiança na informação3.
A colaboração entre plataformas online, governos e sociedade civil também se apresenta
como medida essencial. Essas parcerias podem envolver o compartilhamento de
informações, o desenvolvimento de políticas e regulamentações apropriadas, bem como a
promoção de iniciativas conjuntas de educação e conscientização.
Apoiar e promover o jornalismo de qualidade é fundamental para combater a
desinformação. Isso pode ser alcançado por meio do apoio a veículos de notícias
confiáveis, incentivando a diversidade de fontes de informação, o jornalismo investigativo e
fomentando uma cultura de assinatura e pagamento por conteúdo jornalístico.
Por fim, a implementação de regulamentações adequadas desempenha um papel
importante na prevenção da desinformação. É essencial que essas regulamentações sejam
equilibradas, respeitando a liberdade de expressão e os direitos fundamentais, ao mesmo
tempo em que estabelecem responsabilidades claras para as plataformas e penalidades
para a disseminação deliberada de informações falsas.
Nota-se, portanto, que a edição de um projeto de lei não é a bala de prata para acabar com
a desinformação. Há que se adotar uma abordagem holística e multidimensional,
combinando medidas regulatórias e não regulatórias, que permitam aproveitar os benefícios
das tecnologias e plataformas digitais, ao mesmo tempo em que se garante a transparência
e responsabilidade das empresas nesse ambiente digital.
4. DA NECESSÁRIA CONVERGÊNCIA REGULATÓRIA
Aspecto importante a ser considerado sobre a iniciativa regulatória que busque combater e
remover conteúdos falsos compartilhados nas plataformas digitais é a interação e
harmonização da futura norma com os demais diplomas vigentes.
Nesse aspecto, cumpre avaliar se há compatibilidade entre o novo Projeto de Lei (PL)
260/2020, que visa apresentar respostas para aplacar as fake news e a Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD), Lei no 13.709/2018, uma vez que a LGPD já aborda muitas das
preocupações relacionadas à proteção de dados pessoais discutidas e inseridas no bojo do
PL das Fake News.
Cumpre ressaltar que a LGPD tem como objetivo proteger os direitos fundamentais de
liberdade e de privacidade. Sem olvidar outros direitos, elencados no seu art.igo 2o, como o
livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, tendo como fundamentos o
respeito à privacidade, à inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem. A LGPD
também estabelece princípios e diretrizes para o tratamento de dados pessoais, como a
autodeterminação informativa. Dessa forma, o diploma reconhece o papel fundamental dos
cidadãos no controle de seus próprios dados e de tomarem decisões sobre como essas
informações são coletadas, usadas, armazenadas e compartilhadas por terceiros.
Nota-se que muitas questões relacionadas à proteção de dados pessoais são abordadas no
PL 2630/2020, conforme a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) apontou na
Análise preliminar do Projeto de Lei no 2630/20. Na análise apresentada, citou-se que a
LGPD aborda diversas questões que estão no bojo do PL 2630/2020, como o
consentimento, a formação de perfis (profiling) e o tratamento de dados de crianças e
adolescentes. Nesse ponto, o conflito das normas é iminente, considerando que a Agenda
Regulatória da ANPD para o biênio 2023-2024 já prevê a edição de orientações e a
regulamentação de alguns destes temas, como proteção de crianças e adolescentes no
ambiente digital; direitos dos titulares; acesso a dados para fins de pesquisa; inteligência
artificial; e decisões automatizadas.
A Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD), órgão responsável por
fiscalizar e aplicar a LGPD, desempenha um papel crucial na proteção dos direitos
individuais e na promoção de um ambiente digital seguro. É importante que as discussões
em torno do PL das Fake News considerem as competências já estabelecidas pela ANPD e
evitem a sobreposição ou conflito de competências e atribuições entre a Autoridade e a
futura estrutura a ser criada ou designada para supervisionar e fiscalizar o cumprimento da
legislação proposta.
Precisamos de um marco regulatório convergente que promova o combate a
desinformação, preservando o arcabouço normativo vigente de proteção de dados
pessoais. Há que se ter em mente também que as soluções estrangeiras não testadas não
devem ser adotadas indiscriminadamente, pois cada país possui suas particularidades e
desafios únicos.
Nesse panorama, cabe mencionar o manifesto elaborado pela Federação do Comércio de
Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) e outras entidades, em
que se destaca a necessidade de uma abordagem cuidadosa e equilibrada na regulação de
temas relacionados à proteção de dados. As entidades defendem a necessidade de se
manter a centralidade da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e da ANPD quanto ao
tema “proteção dos dados pessoais” como medida necessária e essencial para a segurança
jurídica e harmonização do ambiente regulatório nacional.
Em suma, a desinformação no ecossistema digital é um problema complexo que exige
abordagens integradas, respeitando os direitos fundamentais, como a privacidade e a
liberdade de expressão. A LGPD já estabeleceu bases importantes nesse sentido, e o PL
2630/2020, mais que prever a observância à proteção de dados pessoas e da privacidade,
como princípio, deve considerar e complementar as normas já existentes, promovendo um
ambiente digital seguro, transparente e responsável.
A construção de uma regulação responsiva, que leve em conta os impactos e riscos
envolvidos, é essencial para garantir a proteção dos direitos no ambiente digital. Nesse
sentido, é fundamental considerar a privacidade, a proteção de dados pessoais, a liberdade
de expressão e o direito à informação como pilares fundamentais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A desinformação no ecossistema digital é um desafio complexo que requer uma abordagem
integrada. No entanto, é importante reconhecer que a regulação por si só não é suficiente
para resolver esse complexo problema. É essencial que o Brasil caminhe em direção a
abordagem holística e integrada, combinando diferentes medidas que atuem na prevenção
da desinformação.
Entre as medidas eficazes, destaca-se a educação midiática e a alfabetização digital, que
capacitam os indivíduos a avaliar criticamente as informações que recebem. Além disso, a
verificação de fatos e a checagem de fontes são aspectos cruciais na luta contra a
desinformação, contando com a participação de agências especializadas nessa apuração.
A colaboração entre plataformas online, governos e sociedade civil é igualmente
fundamental. Parcerias que envolvam o compartilhamento de informações, o
desenvolvimento de políticas e regulamentações apropriadas, assim como iniciativas
conjuntas de educação e conscientização, são essenciais para enfrentar esse desafio
complexo.
O apoio ao jornalismo de qualidade também desempenha um papel fundamental. Incentivar
veículos de notícias confiáveis, promover a diversidade de fontes de informação e fomentar
uma cultura de assinatura e pagamento por conteúdo jornalístico contribuem para combater
a desinformação.
Por fim, é necessário estabelecer normas adequadas, equilibradas e respeitosas à
liberdade de expressão e aos direitos fundamentais, como a proteção de dados pessoais e
o acesso à informação. Nesse cenário, convém lembrar que a LGPD já estabeleceu
importantes bases e que está de acordo com os principais paradigmas internacionais
existentes. Desse modo, uma proposta legislativa no combate às fake news somente será
considerada eficiente se vier a complementar e aprimorar todas as regulações existentes,
sem conflitos e antinomias.
É fundamental que essa nova norma estabeleça responsabilidades claras e factíveis para
as plataformas digitais, bem como penalidades para a disseminação deliberada de
informações falsas, a fim de aproveitar os benefícios das tecnologias e plataformas digitais,
ao mesmo tempo em que se garante a transparência e a responsabilidade das empresas
nesse ambiente digital.
Vale repisar, por fim, que, diante de um fenômeno diretamente relacionado à liberdade de
expressão e, considerando as complexas interações envolvidas, é crucial que a abordagem
no Brasil seja cautelosa e amplamente debatida.
_________________________
1. Profiling ou perfilamento é o processo de coleta, análise e uso de dados pessoais para a criação e
classificação de perfis individuais ou de grupos. Envolve a utilização de algoritmos e técnicas de
análise de dados para identificar padrões, características, preferências e comportamentos de
indivíduos, com o objetivo de entender, prever e influenciar o seu comportamento.
2. Conforme apontou a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com
base no relatório Leitores do Século 21 – Desenvolvendo Habilidades de Alfabetização em um Mundo
Digital, 67% dos jovens brasileiros não são capazes de discernir fatos de opiniões. Disponível em:
https://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2021/05/nativos-digitais-nao-sabem-buscar-conh
ecimento-na-internet-diz-ocde.html. Acesso em 31.5.23.
3. Existem várias agências de checagem de fatos renomadas em todo o mundo. Alguns exemplos: 1.
Agence France-Presse (AFP) Fact Check: , 2. Associated Press (AP) Fact
Check; 3. BBC Reality Check; 4. FactCheck.org.