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As raízes do autoritarismo no Brasil

Quando se fala em autoritarismo no Brasil, logo rememora o período do regime militar, embora quase nunca se fale do caudilho que chefiou o país por quase vinte anos. Este é apenas o aspecto mais visível de um fenômeno político que percorre a história do Brasil.

O autoritarismo que se vai descrever neste artigo é mais entranhado na estrutura do que no mandonismo de algum ditador. Conforme apresenta José Antônio Giusti Tavares, o autoritarismo é intrínseco ao modo de formação do Estado brasileiro.

Quando se compara a história de alguns povos, pode-se diferenciar aqueles que se formaram ao longo de um processo sucessivo – como a Inglaterra – e aqueles que, em um momento específico, optaram por organizar, ao mesmo tempo, a sociedade nacional, a montagem do Estado, a formação dos meios capitalistas e as instituições – como a Alemanha e a França.

Isso sintetiza tipos de formação. No caso da Inglaterra, primeiro surgiu a sociedade; na França, o aparelho do Estado veio antes da sociedade.

Uma possível causa para essas diferenças, na consolidação de um país é a força do sistema feudal. Nos países em que a tradição formou a cultura política, com base em um sistema feudal de policentrismo político, junto com um poder central tênue, houve um ambiente fértil para que a sociedade se organizasse espontaneamente antes do Estado

Já naqueles países sem uma experiência feudal significativa, o Estado veio primeiro e agiu como um empreendedor, criando instituições para educar a população a sair do Estado de Natureza e formar a sociedade. Esse processo construiu uma sociedade nacional heterônoma, sob a hegemonia de um Estado dotado de autonomia de poder, que protelara o surgimento de uma sociedade autônoma.

Isso significa que, no primeiro caso, o Estado surge com um papel subordinado à sociedade. No segundo, o Estado já nasce com autonomia, como uma potência burocrática, cujo controle e dominação sobre a sociedade se dariam por mecanismos racionais-legais e de impessoalidade institucional.

Na definição de Giusti, essas duas vertentes de organização social produzem sistemas políticos a partir da ênfase que se dá sobre a modernização política e o desenvolvimento político.

A modernização política é a organização de um nível expressivo de diferenciação e complexidade estruturais. Essas levam à crescente especialização funcional do Estado: à  integração nacional ao redor de um centro, por referência ao qual inúmeros atores sociais definem seus interesses e orientam suas ações, à consolidação do Estado como organização burocrática-racional-legal – formal e impessoal – a ser reconhecida como aquela potência que detém o monopólio da violência legítima e da arbitragem política e regulatória.

O desenvolvimento político acontece quando os centros, os mecanismos e o metabolismo de decisão são confiados ao pluralismo, à autonomia, à representatividade e à competição entre atores individuais e coletivos como elites, grupos, organizações e associações intermediárias voluntárias.

Os conceitos aplicados à modernização e ao desenvolvimento político permitem conjecturar qual estrutura de poder se aproxima mais de um regime autoritário ou de um regime liberal.

A estruturação histórica dos regimes políticos do Ocidente carrega as características da evolução dos sistemas de poder:

1) Quanto mais avançado e consolidado o estágio de desenvolvimento político de uma sociedade no momento em que se dá o primeiro passo em direção à modernização, menor é a intensidade e o recuo, e maior a estabilidade e a consolidação do desenvolvimento político após a modernização (aqui, Inglaterra e Estados Unidos são bons exemplos);

2) Quanto menos avançado e consolidado o estágio de desenvolvimento político no momento em que se direciona para a modernização, maior é a intensidade e a duração do recuo do desenvolvimento político posterior à modernização  (como  na França e Alemanha).

Pode-se analisar também os sistemas de poder de um país em referência à relação entre o Estado e a sociedade. Giusti diferencia, de maneira ampla, essa relação como sendo de Subordinação e de Autonomia. Usando a compreensão de Max Weber, os conceitos-tipo são teóricos, mas na realidade da vida social eles estão entrelaçadas.

O Estado subordinado se apresenta quando são dominantes características políticas como a representação. É a subordinação da fisiologia e dos movimentos do Estado à classe ou à coalizão de classes, de modo que o Estado é mais afetado pela sociedade do que ele a afeta. Em outras palavras, seria mais uma ordem política espontânea, dentro de um automatismo de forças sociais, num mercado político que se autorregula. Por ser subordinado, a nação se aproximaria de um Estado liberal.

Já a característica autônoma do Estado é uma ordem política fundada em maior estatização da sociedade e no maior grau de intervenção voluntária permanente do Estado. Ele atua como organização arbitral e regulatória, apartada da sociedade. Neste caso, o Estado autônomo se aproxima do autoritarismo, porque a relação com a sociedade é fria e impessoal.

Além disso, o Estado Autônomo existe como uma realidade que consegue sustentar-se sobre si mesma, com independência em relação às forças sociais. Isso só se torna possível porque ele opera conforme uma organização burocrática e insensível.

A organização burocrática é o elo fundamental que viabiliza outros elementos essenciais à realidade do Estado: o monopólio do sistema monetário, o monopólio do sistema fiscal e o exército nacional. É de destacar-se também o monopólio da realização da Justiça, que a modernização política fez substituir as jurisdições autônomas do localismo medieval pela instituição das instâncias de uma grande unidade jurisdicional, cujo coração e o vértice são o próprio Estado.

A Modernização do Brasil

A partir das definições apresentadas pode-se vislumbrar em quais graus de liberdade se enquadra o Estado brasileiro.

Recortando a análise da estrutura do Brasil a partir da Primeira República, verifica-se que a sua organização econômica era de extrema fragmentação oligárquica, regionalista e local. A sociedade era a expressão de coalizões fluidas e frouxas. Esse modelo chegaria ao fim com a Revolução de 30.

O processo revolucionário inaugurado em 1930, com conflitos entre as oligarquias regionais e periféricas, terminaria promovendo a integração nacional e também a formação do Estado burocrático-central.

No Brasil surgido entre 1930 e 1937, foram as oligarquias periféricas e atrasadas que assumiram o desafio de transformação revolucionária de uma sociedade oligárquica e regionalista para uma sociedade urbana, nacionalmente integrada e centralmente orientada.

A consolidação do poder central que se esboçara em 1930 e foi confirmada em 1937, dotou o país de um centro de decisões com considerável autonomia em relação aos grupos econômicos tradicionais e as lideranças locais.

Uma série de instituições paraestatais foram criadas para defender os interesses dos setores econômicos. Tal centralização levou ao afastamento da mediação de grupos políticos locais, vinculando o poder central de forma direta aos interesses de distintas áreas do país.

Por organizar o poder de maneira a não permitir a hegemonia de nenhuma região, nem de grupos de interesse, Getúlio Vargas usufruiu uma independência para exercer o poder que nenhum governante anterior conhecera.

Essa independência se sustentou em duas ações políticas de Getúlio, que marcaram o período pós-revolução: a nomeação dos interventores nos estados e a criação Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), órgão sobre o qual recaía a concentração vertical e horizontal do poder desenvolvida pelo Executivo Nacional.

A não-subordinação do governo central era tanta que o DASP tinha a autoridade de sancionar ou não qualquer decreto ou lei editados pelo interventor nos estados.

No fim do Estado Novo, Getúlio finalmente consegue consumar a modernização política, que compreendeu a integração nacional e a construção do Estado, o que causou um recuo no desenvolvimento político. Recuo esse que só viria a amainar a partir da Constituição de 1988.

A partir da Constituição de 1946, o Executivo nacional manteve a centralização, mas mudou a estratégia de controle: desarticulava de maneira clientelística novos grupos na política.

Naquela época, Juscelino Kubitschek atraía as personalidades mais representativas das diferentes classes para consolidar os quadros dirigentes dos ministérios e da burocracia governamental das áreas econômica e social. O resultado da cooptação foi a transformação desses representantes da sociedade frente ao Estado em representantes do Estado frente à sociedade.

O saldo político consolidado da cooptação populista foi a neutralização do Legislativo, colocando-o à margem da formulação de políticas públicas, ao mesmo tempo em que mantém, no Executivo, a elite tecnoburocrática apartada do controle do Legislativo.

Mesmo com o advento da Constituição liberal de 1946, a Autonomia do Estado recrudesce. Situação que agudiza após o Regime inaugurado em 1964.

As intervenções militares que ocorreram entre 1945 e 1962 tinham o enfoque de moderador. Os militares se percebiam como guardiões da ordem constitucional. Encaravam a intervenção no processo político como algo excepcional e transitório, objetivando restaurar a ordem política e devolvê-la aos civis.

Não era outra a ideia de Castelo Branco. Entretanto, a lógica histórica da República levou o Estado brasileiro a um padrão de políticas públicas e de políticas econômicas que até o presidente empossado em 1964, que Giusti define como liberal e moderado, não imaginava. A cúpula do governo que geria o complexo tecnoburocrático redefinira o seu papel político, mas manteve a hegemonia do poder central. Eles acreditavam não ser mais guardiões de uma ordem constitucional, mas sim instituidores revolucionários de uma nova ordem política.

Deste ângulo, percebe-se que o sistema político vigente de 64 e após caminhou em termos de continuidade e não de ruptura, em relação ao ethos político inaugurado na Revolução de 30.

Conforme Giusti escreveu em 1977, ainda “há um largo lugar para ampliar a autonomia cumulativa de poder e para a hegemonia do Estado sobre a sociedade na trajetória política brasileira”. Esse lugar ainda não foi definido. Talvez jamais seja, porque a história mostra a indecisão social e política entre dois projetos alternativos, que competem subterraneamente pela condução do sistema político brasileiro: o liberalismo cosmopolita e o estatismo autoritário.

O Aprofundamento do Autoritarismo Estatal

A luta subterrânea entre um Estado Subordinado e um Autônomo não tem soldados identificáveis publicamente. Pode-se dizer que é uma batalha espiritual ou de inspiração de pessoas de boa-fé. Essas tiveram coragem de expressar opinião contra o consenso da estrutura de dominação da sociedade brasileira pelo Estado frio e impessoal.

Desde o estabelecimento da autoridade do DASP, passando pela cooptação das elites para dentro do Estado, a estrutura autoritária se mantém, mesmo com o advento da Constituição Cidadã de 1988.

Se Getúlio e Juscelino tiveram a habilidade política no Executivo de estrangular o Legislativo e cooptar a sociedade, a Constituição de 1988 permitiu, com interpretações judiciais por vezes contraditórias, asfixiar tanto a sociedade quanto os demais poderes.

A última Constituição, longa e ampla de entendimento, não conseguiu garantir direito básico de cidadania, qual seja, o de contestar publicamente as ações dos poderes.

A dominação estrutural do País, mantida, nesta era, pela interpretação constitucional, permite que o Estado tenha a faculdade de intervir, deliberada e permanentemente, em atos e em processos de diversos atores e de outros poderes, os quais têm legitimidade soberana e representativa para agir.

O autoritarismo brasileiro fica mais acentuado quando a estrutura de dominação, assentada pela histórica burocracia do poder, encontra terreno fértil na vaidade ideológica do amor ao bem dos intérpretes jurídicos.

Os interpretes jurídicos chegaram a tal autoritarismo que não importa quão legítima é a personalidade política a decidir. Se ela determina um ato que pode ser visto como uma afronta ao Estado autônomo, prontamente o Judiciário interfere, muda a jurisprudência, decide contra legem se preciso, não permitindo que tal desiderato político prossiga.

Esse é um tipo de conflito no qual o Estado Autônomo brasileiro não admite contestação. O Judiciário interpreta que qualquer inconformismo com o que determina a juristocracia é um atentado ao próprio Estado.

Aquilo a que assistimos a partir de 2019 é a incompatibilidade entre as formas de dominação: de um lado a racional-legal e de outro a carismática.

O desafio carismático à dominação formal do nosso Estado Autônomo fez surgir embates gigantes entre os poderes, porque o Judiciário se autodenominou o órgão iluminista e o editor da verdade. O conflito foi escalando-se, porque no dizer de Weber, o carisma de um líder guerreiro se opõe estritamente à dominação legal, especialmente à burocracia que sustenta o Estado Autônomo:


– “está escrito, mas eu vos digo (…)”

“(…) Quando à determinada diretiva do líder carismático se opõe outra concorrente, temos uma luta pela liderança que só pode ser decidida por meios mágicos ou pelo reconhecimento por parte da sociedade”.

O inconformismo autoritário da dominação burocrático-legal percebeu que o líder (para usar a terminologia de Max Weber) Bolsonaro não poderia prosseguir. Seria preciso derrotá-lo sistematicamente, desde as simples decisões administrativas até a disputa eleitoral.

Neste ano de Nosso Senhor de 2023, todos os brasileiros sabem o resultado da disputa. Os atentos à estrutura do nosso Estado burocrático autônomo hão de perceber que tudo continuou como dantes. O autoritarismo brasileiro sempre vence no final.