Como ficou evidente no debate sobre o aborto em países como Irlanda e Argentina nos últimos anos, a narrativa dos defensores da legalização se baseia no respeito ao Estado laico e na não-interferência da Igreja em assuntos de governo. O argumento é o seguinte:
Os cristãos têm o direito de se opor ao aborto, mas o Estado laico exige que as decisões de governo sejam tomadas sem levar princípios religiosos em consideração.
Como poucas pessoas defendem o fim do Estado laico, pode parecer evidente que a única solução é legalizar o aborto.
Os cristãos têm o direito de usar a religião para argumentar contra o aborto. Não é de forma alguma um erro do ponto de vista formal. Mas pode ser um equívoco retórico. Hoje, utilizar-se de argumentos puramente religiosos na esfera pública significa entregar a vitória do debate ao adversário.
A verdade é que é possível construir um raciocínio sólido em defesa da proibição do aborto sem recorrer à religião.
Este raciocínio, dividido em três passos, é um simples silogismo. Simples e claro como todo bom silogismo. A primeira premissa é esta:
1) Toda vida humana que não oferece ameaça imediata deve ser protegida incondicionalmente pelo Estado.
Parece um excesso afirmar simplesmente que toda vida humana deve ser protegida pelo Estado. Um terrorista que mantenha reféns pode ser eliminado pelas forças policiais para que as vidas inocentes sejam salvas. Ou seja: a proteção à vida inclui, por necessidade, a possibilidade de eliminação de uma vida que decida colocar outras em risco de forma deliberada e injustificada.
Mas este não é o caso do embrião.
A vida humana tem valor intrínseco – como reconhecem os marcos legais contemporâneos, inclusive a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, cujo preâmbulo afirma:
“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo…”
O documento, por sua vez, ecoa a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776:
“Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, e são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade”.
A Constituição também brasileira prevê, no seu artigo 5o,
“a inviolabilidade do direito à vida”.
Alguém que se oponha a essa proposição precisará admitir, também, que está abrindo as portas para a relativização da eugenia e do genocídio. A vida humana tem valor por si própria, e vidas que não oferecem ameaça imediata a alguém jamais podem ser reduzidas a meio para qualquer que seja o fim.
Toda vida humana que não oferece ameaça imediata deve ser protegida pelo Estado de forma incondicional.
A segunda premissa é a seguinte:
2) O embrião é humano, está vivo e não oferece ameaça imediata.
Analisemos cuidadosamente cada parte dessa proposição. Basta apenas que uma dela seja falha para que o aborto seja moralmente aceitável.
Em primeiro lugar: o embrião está vivo?
Muitas algumas décadas atrás, não havia tantas informações sobre a geração da vida. Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, a prática do aborto era permitida por lei até os anos 1800. Mas hoje, com exames de ponta, é impossível negar que o embrião tem vida. Desde os primeiros dias, ele apresenta um ritmo próprio de desenvolvimento. Em duas semanas e meia, tem um coração que bate. Logo no início, já possui um sistema próprio de circulação, um tipo sanguíneo próprio, órgãos próprios. Trata-se de um ser vivo qualquer que seja o critério utilizado. O óvulo recém-fecundado já tem uma complexidade muito superior à de organismos unicelulares que, de forma unânime, são reconhecidos como seres vivos.
Os cientistas reconhecem isto. Em 2018, um pesquisador da Universidade de Chicago entrevistou 5.577 biólogos de mais de 1.000 instituições acadêmicas. Conclusão: 96% concordam que a fertilização (ou concepção) é o marco inicial da vida.
Em segundo lugar, o embrião é humano?
É pertinente lembrar que, desde a concepção, o embrião possui um DNA diferente do pai e da mãe. E, como não deve ser uma surpresa, esse DNA não é o de uma sequoia ou um canguru, mas 100% humano. Negar esse fato seria negar a própria biologia, que depende da classificação lógica dos seres vivos em categorias claramente distintas.
Para demonstrar o absurdo das proposições contrárias, basta apenas indagar: se o embrião não é humano, a qual espécie do reino animal ele pertence? Se não pertence ao reino animal, é por acaso um vegetal? De que tipo?
Sim, o embrião gerado por dois seres humanos só pode ser humano.
Em terceiro lugar, o embrião oferece ameaça imediata a alguém?
Em praticamente todos os casos, a resposta é não. Alguém pode argumentar que alguns embriões (ou fetos) de fato oferecem ameaça imediata à vida da mãe devido a problemas de saúde desses ou delas. Mas deixemos de lado este cenário, que é extremamente raro, e aceitemos a premissa de que de fato existam circunstâncias em que é preciso eliminar o embrião para salvar a mãe. A conclusão a que chegaríamos é a de que o aborto deve ser ilegal com a exceção dos casos em que há risco de vida para a mãe.
Daí vem o corolário.
3) O embrião deve ser protegido incondicionalmente pelo Estado
Se os embriões estão vivos, são humanos e não oferecem ameaça imediata, precisam desfrutar da mesma proteção oferecida aos outros seres humanos – novos e velhos, economicamente produtivos ou não, autossuficientes ou não.
Haverá aqueles que, mesmo aceitando as premissas e a conclusão, insistirão: sim, mas e o que fazer com os abortos que já acontecem?
Ora, quem admite que a proposição analisada acima é verdadeira tem o dever de evitar abortos, não de promovê-los com a chancela do Estado.
Alguns optam por ignorar a relação entre as premissas (que eles se veem forçados a aceitar) e a conclusão (que eles rejeitam). Assim, atraem para si a pecha de irracionais e contrários à lógica, o que é notável já que alguns defensores da legalização do aborto fazem questão de usar as vestes de porta-vozes da racionalidade diante da escuridão.
E as crianças defeituosas? E os filhos de mães pobres, que podem virar criminosos no futuro? Evidentemente, defender o aborto nesses casos é uma violação da premissa maior. Quem concorda com o aborto deles está automaticamente negando a proposição de que Toda vida humana que não oferece ameaça imediata deve ser protegida incondicionalmente pelo Estado.
E, evidentemente, a consequência nefasta dessa postura utilitarista é de que será preciso haver um juiz, um definidor de quais são as vidas merecedoras de serem vividas. E todos os que defendem a aplicação dessa regra a terceiros não costumam aceitá-la para suas próprias vidas.
As gestantes em situação de risco socioeconômico ou psicológico merecem compaixão, compreensão e cuidado. Mas o melhor uso da lógica nos impele a admitir que 1) Toda vida humana que não oferece ameaça imediata merece ser protegida incondicionalmente pelo Estado; 2) O embrião é humano, está vivo e não oferece ameaça imediata; 3) O embrião deve ser protegido incondicionalmente pelo Estado.
O raciocínio falho dos defensores do aborto
Os oponentes sérios da proibição do aborto costumam adotar a premissa maior, expressa no item 1, sem problema. Tanto que, com frequência, afirmam que a legalização da prática salvaria vidas de mulheres que hoje recorrem a procedimentos inseguros.
A formulação deles, portanto, parece seguir o seguinte caminho:
1)Toda vida humana que não oferece ameaça imediata deve ser protegida pelo Estado.
2)A ilegalidade do aborto causa morte de mulheres.
3)O aborto deve ser legalizado.
O problema, neste caso, é que o encadeamento lógico tem falhas evidentes. Ele se baseia no princípio – jamais justificado pelos que utilizam este argumento – de que de que o ventre da mulher gestante não abriga uma vida humana. Ou seja: por omissão ou estratégia bem pensada, não se discute a questão central em todo o debate sobre o aborto.
Se um aborto é equivalente a extrair um dente, como já teorizou a então presidente Dilma Rousseff, porque não legalizar todos os abortos em todas as circunstâncias? Por mais apreço que tenham pelos seus compatriotas, poucos brasileiros se importariam com uma lei que dá direito a alguém extrair o próprio dente, seja qual for a razão.
Portanto, se a premissa oculta (a de que as gestantes não carregam vidas humanas em seus ventres) se sustenta, o debate se encerra com uma vitória imperativa dos pró-legalização. Não havendo vida humana até o nascimento, legalizemos o aborto, já que isso não ferirá de forma alguma a primeira premissa – a de que toda vida humana que não oferece ameaça imediata deve ser protegida.
Mas, como vimos acima, não é este o caso.
Com base nas melhores evidências científicas, na lógica mais consistente e nos princípios morais nos quais se baseia a própria convivência humana, somos obrigados a concluir que o aborto deve ser coibido pelo Estado, inclusive com a força da lei.