O mês de setembro trouxe muita surpresa e rancor para parte da elite brasileira confiante em um racionalismo mecânico – pretensiosamente iluminista.
Essa elite, conforme Gaetano Mosca[1] já a identificara, mecanicamente raciocinava que se ela não achasse bacana alguma coisa a massa haveria de concordar, porque, afinal, era ela quem tinha o papel de conduzir os destinos do povo.
Setembro chegou e alguns de seus representantes, visivelmente ressentidos, transformaram as suas fisionomias artificialmente simpáticas dos vídeos conhecidos em autênticas imagens raivosas, de almas transtornadas. Tudo porque essa elite cultural não admitia que um líder bronco pudesse ir ao encontro de milhões de pessoas nas ruas que, em sua grande maioria, pediam respeito à Constituição.
Outros, severamente transtornados com o que viam por realidade, preferiram acreditar em supostas imagens abstratas da mente para dizer que o Sete de Setembro não tivera significado. O povo nas ruas ocorreu como uma indução a macaquear o 4 de julho dos americanos. Nada brasileiro autenticamente.
Já o cartesianismo de toga, como um farol aceso de tanta vaidade iluminada, veio alertar a nação eclipsada de que a democracia no mundo vive um momento delicado, com países vivendo um retrocesso democrático, um constitucionalismo abusivo ou ainda uma democracia iliberal.
Constitucionalismo abusivo? Teria sido um ato falho?
Em lamento, disse (Barroso) que o populismo tem lugar, quando líderes carismáticos manipulamas necessidades e os medos da população, apresentando-se como o anti-establisment, prometendo soluções simples.
Tais palavras iluminadas parecem ter sido retiradas de Norberto Bobbio, no seu Dicionário de Política, a respeito do verbete populismo. Se foram, copiou-se apenas o que era de interesse para emocionar a própria retórica. Deixou de avançar na resenha quando Bobbio aponta outra característica – “o populismo exclui a luta de classe: é fundamentalmente conciliador e espera transformar o establishment”.
Bobbio ainda diz que, para o populismo, a divisão é entre povo e o “não-povo”. “O não-povo pode ser internamente representado, não só por uma elite cosmopolita, mas também por uma elite plutocrática, julgadas portadoras de ideologias ou de valores estranhos à tradição popular”. Se assim for, é bem provável que o populismo considere não-povo o plutocrata que se acha um herdeiro do iluminismo, ávido por empurrar a história e chamando de atrasada toda a tradição popular.
O que deve ter enrubescido toda essa elite plutocrática foi ter percebido que, mesmo em uma pandemia, a necessidade de reclamar o direito à liberdade e ao trabalho suplantou o medo do contágio. Foi uma manifestação gigante, clamando por aqueles valores, que os iluministas racionais achavam que já não era mais uma questão.
Não havia necessidade de rubor. Não foi uma manifestação incitada por um populista. A manifestação sim foi uma demonstração de que a ciência de Max Weber prevaleceu sobre a dos Cartesianos iluministas.
Os iluministas impuseram mais de um ano restrições à liberdade e, mesmo assim, a doença recrudesceu. O povo desacreditara na elite. O povo nas ruas sabia quem determinou o fechamento dos negócios e as pessoas permanecerem em casa, porque isso, diziam, era o racional e o científico a ser feito.
No Sete de Setembro, esse povo preferiu desobedecer, e saiu para medir a força de sua liberdade contra os desejos daqueles que queriam ser o seu tutor.
Não havia um líder incentivando o protesto para o dia da independência. O povo se mobilizou por si, como já havia ocorrido na Primavera Árabe[2] e na Ucrânia[3].
É preciso reconhecer o poder descentralizado das redes sociais. A comunicação e a informação passaram a fluir horizontalmente. Não é mais necessária a intermediação de outra elite para explicar o que se está vendo. Nos tempos de liberdade produzidos pelas redes sociais, a informação cultural é direta e inter-relacionada.
A liderança carismática já tinha experiência com essa nova maneira de comunicação. Aprecia falar direto, com sinceridade, mesmo que às vezes possa parecer rude.
É fato que esse líder, desde o início da doença, sempre dizia que não se devia trancar a vida, porque nenhum país sobrevive sem economia. Também dizia que o direito à opinião e à liberdade é uma garantia fundamental, que deve ser respeitada por todos.
Sempre que ele dizia isso, os iluministas, que não aceitam suas ideias serem contrariadas, o acusavam de estar preparando um golpe.
Vaidosos, imaginavam que aquelas falas eram uma indução para desrespeitarem as sentenças. A pretensão intelectual era tanta, que com voz mansa e pausada de uma professora de jardim de infância, iam prendendo quem reclamasse das suas decisões racionais-legais.
Pois aí, no dia Sete de Setembro, se apresentou o momento para o povo pesar qual dominação política teria mais legitimidade: a Dominação Racional-Legal ou a Dominação Carismática.
Max Weber[4] chama de dominação a probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas. Dominação seria também um certo mínimo de vontade de obedecer. Tal vontade não se baseia apenas em motivos puramente racionais, materiais ou afetivos. Junta-se a esses fatores outro elemento: a crença na legitimidade.
A legitimidade é explicada como aquilo que vem da percepção do prestígio de ser modelar ou obrigatória àquele que obedece.
A legitimidade de cada dominação tem a sua vigência, a partir de diferentes detalhes. A de caráter racional tira sua legitimidade das ordens estatuídas e do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, são nomeados para exercer a dominação. Isto é, se obedece à ordem impessoal e aos seus superiores por ela determinados, em virtude da legalidade formal.
Já a legitimidade carismática conquista sua legitimidade do poder heroico, ou do caráter exemplar de uma pessoa.
O que se viu no Sete de Setembro foi a contestação da legitimidade de um Tribunal, que, do alto de uma pretensa racionalidade iluminada, ousou corrigir comportamentos públicos. Agiu, por meio de ordens, as quais feriram a legalidade formal do devido processo legal, ao proceder como acusador e julgador de pessoas que ousaram exercer o direito da liberdade de expressão, de um modo pouco nobre.
Um Tribunal que, além de falar nos autos, expede desejosas doutrinas para ensinar a massa “ignara” de Urbi et Orbi como ser bem-comportada ou como o sistema de votação brasileira é à prova de fraude.
O povo apenas foi a rua para dizer ao Tribunal para atuar dentro do seu quadrado, que a legitimidade está em um cosmo de “regras abstratas” e não na retórica de uma justiça pessoal.
Diante de tal decepção com a dominação desencantada da elite racionalista, a massa humana, já não silenciosa, demonstrou confiança no personagem com uma qualidade pessoal específica. Qualidade essa que não precisava ser explicada, porque o que realmente importa é como ela é avaliada pelos carismaticamente dominados.
Lá foi o povo aclamar esse personagem com a esperança de que ele tivesse a força de um herói de guerra para liderá-los a conquistar de volta a liberdade e os valores tradicionais.
Ao contrário do que o ministro discursou sobre a manifestações de Sete de Setembro, não foi o Líder Carismático que convocou a população às ruas; foi o povo que espontaneamente se organizou e foi protestar. O Líder Carismático apenas foi ao encontro da franqueza do povo. Lugar em que se sente confortável e confiante.
Max Weber escreveu sobre as dominações, observando um período de desconfiança social na Alemanha em razão da propaganda dos movimentos comunistas do início do século XX. Via a burocracia do Estado cumprindo suas obrigações sem brilho e sem empolgar. Comparou esse período a um desencantamento do mundo, que seria um momento fértil para o surgimento de uma liderança carismática.
Guardando as devidas proporções, o Sete de Setembro mostrou um país procurando encantar-se. Encantar-se com espírito de brasilidade e com o de cidadão, que olha erguido nos olhos da elite pálida, que não entende o que ocorreu.
[1] MOSCA, Gaetano; The Rulling Class.
[2]Conhecida mundialmente, foi uma onda revolucionária de manifestações e protestos que ocorreram no Oriente Médio e no Norte da África, a partir de 18 de dezembro de 2010. As redes sociais desempenharam um papel considerável nos recentes movimentos contra a ditadura nos países árabes. A propagação do movimento conhecido como Primavera Árabe, que começou em 2010 na Tunísia, para todo o Norte da África e Oriente Médio não teria sido a mesma sem os recursos proporcionados pela internet.
[3] Tanto Facebook quanto Twitter se tornaram plataforma essenciais para a coordenação dos protestos e suas atividades, com o compartilhamento de informações sobre os protestos na Ucrânia. A página oficial do EuroMaiden (UK) no Facebook é utilizada para informar manifestantes sobre notícias urgentes, discutir planos de futuras ações, alertar contra o uso de violência, compartilhar avisos e maneiras de lidar com as forças policiais, além de outras questões.
[4] WEBER, Max: Economia e Sociedade Vol 1.
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