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Joaquim Nabuco, Resposta às mensagens do Recife e de Nazaré (1890)

As linhas que se seguem exibem o pensamento de Joaquim Nabuco, uma das figuras mais importantes da história brasileira, a respeito do fim da monarquia. Elas foram escritas em março de 1890, menos de seis meses depois da proclamação da República. Os comentários de Nabuco, que foi parlamentar, diplomata e escritor, foram feitos em resposta a correspondências recebidas do Recife e de Nazaré. No trecho abaixo, Nabuco exibe sua opinião sem reservas. Prudente, ele afirma que seria melhor se a República não tivesse sido proclamada no Brasil, um país de tradição monarquista – e que, se fosse o caso de a nação se tornar republicana, que a transição fosse feita de forma gradual, e não repentina como havia ocorrido.

Joaquim Nabuco (1849-1910)

“A quarta fase da minha adesão monárquica data de 13 de Maio. A atitude da monarquia, nesse dia, criou entre ela e a parte do abolicionismo a que eu pertencia um laço de solidariedade que, no futuro, com o desenvolvimento da consciência moral no país, se compreenderá melhor do que hoje. É um crime toda obra feita em proveito de ingratos, li em um escritor cristão. Eu não tinha tanta certeza disso, mas tinha de que era um crime nacional a ingratidão, e seria ingratidão, um ano depois da lei de 13 de Maio, derrubar a monarquia com o apoio da propriedade, injustamente ressentida. A Regente, ao assinar aquela lei, podia dizer, lembrando-se da lenda do almirante holandês ao afundar em nossos mares: «A abolição é o único túmulo digno da monarquia brasileira ». Mas as nações que aceitam sacrifícios desses vibram o mais profundo de todos os golpes no seu próprio cerne moral. Propagava-se a República fazendo os libertos dar morras à Princesa no quadrado das senzalas que lhes serviram de prisão, no mesmo ano em que ela os libertou. Era isto cultivar o senso moral da raça negra? E que sorte seria a do Brasil quando as raças saídas do cativeiro sentissem que a sua liberdade estava manchada de ingratidão?

Adam Smith pretende que a sorte dos escravos e dos servos foi sempre pior nas repúblicas do que nas monarquias. Os dois últimos países de escravos da América, os Estados Unidos e o Brasil, a julgar pela força ativa do preconceito de cor em cada um deles, parecem confirmar aquela regra. O mesmo princípio deve estender-se às raças apenas emergidas do cativeiro, e, com muito maior razão, num país onde a escravidão revoltada tivesse tido força para vingar-se da monarquia, abatendo-a. Não há maior paradoxo do que pretender-se que uma revolução social como a de 13 de Maio podia ficar feita num dia.

Destruir, com o auxílio do antigo escravismo, a força nacional que livrou o último milhão de escravos, não seria a lógica do revólver de Booth, mas não era tão pouco a da raça negra, que, até hoje nos Estados Unidos, se mantém fiel ao partido que a libertou, por saber que a abolição não resolveu senão o primeiro problema de sua cor.

Neste último período a noção da monarquia para mim era esta: a tradição nacional posta ao serviço da criação do povo, o vasto inorganismo que só em futuras gerações tomará forma e desenvolverá vida. Benjamin Franklin, sempre que tinha um negócio importante a resolver, estudava as razões pro e contra, escrevia-as em duas colunas defronte umas das outras, e, apagando as que se anulavam, decidia-se pelo número e qualidade das restantes. A isto ele chamava sua álgebra moral. Mais de uma vez, posso dizer, fiz sinceramente esse balanço mental a respeito da monarquia, e sempre foi grande o saldo das razões a favor.

Eu começava por inscrever alguns dos principais argumentos da propaganda republicana na coluna da monarquia, notavelmente, o da exceção na América. Se não fosse o acaso, de termos no Brasil o herdeiro da coroa e a singularidade desse príncipe de querer representar, com o seu próprio trono, o papel de Washington, com o trono de Jorge III, o domínio português na América, depois de uma luta prolongada e de sorte vária entre as diferentes capitanias e a metrópole, ter-se-ia fragmentado, como o espanhol, em diversos povos, a princípio irmãos, logo rivais, e mais tarde inimigos. Sem a ação da monarquia, antes e depois da Independência, teríamos tido uma República mineira, uma Confederação do Equador, uma República rio-grandense, e outros Estados independentes, assim como do primitivo vice-reinado do Peru se formaram nada menos de seis nações. Em vez da monarquia parlamentar, civil, leiga e popular, que tivemos, em uma só pátria, o mundo teria visto, em uns daqueles países, o domínio dos caudilhos, em outros, o do fanatismo religioso, e, em todos, um ambiente político de crueldade e de intolerância.

A vantagem da exceção, porém, não parava em ter sido ela o instrumento providencial da unidade da América portuguesa, no período dispersivo da Independência do Novo Mundo. Planta exótica, a monarquia tinha que manter em redor dela uma atmosfera de liberdade para poder existir na América, ao passo que a república medra neste continente em quaisquer condições, internas ou externas, e resiste ao despotismo, ao desmembramento e à conquista.

Eu inscrevia, é certo, na coluna republicana o argumento do privilégio hereditário, mas anulava-o pelas vantagens que este produzia: a permanência, portanto a imparcialidade da magistratura suprema, e a defesa popular contra a oligarquia política, ou o monarquismo espúrio, o caudilhismo da América. Senti sempre, ouso dizê-lo, pelo ideal republicano a atração magnética do continente, mas se os corpos não podem corrigir a lei de sua própria gravitação, o espírito pode. Herbert Spencer, ainda há pouco, assinalava que a regra de conduta, em moral política, não é querer realizar um ideal absoluto, mas tê-lo diante de nós como um ponto fixo, de modo que caminhemos sempre para ele. Se o ideal do governo pudesse ser uma pura negação — a negação, por exemplo, da monarquia — eu teria, há muito, sido republicano. Não há, porém, ideal negativo. O ideal compõe-se de uma série de aspirações com relação a cada povo, e essas aspirações têm uma ordem em que devem ser realizadas e sem a qual, em vez de nos aproximarmos, nos afastaríamos dele, ideal. Como nos Andes há grandes espaços entre as diversas cadeias, e das primeiras não se podem divisar as últimas, tínhamos que nos elevar muito antes de poder calcular a distância exata a que estávamos da cumeada do ideal republicano, isto é, a República.

A extensão entre a nossa condição social presente e os cimos nevados daquele ideal pareceu-me sempre grande demais para se aventurar sobre ela a ponte suspensa da República. Eu preferia que continuássemos com paciência a abrir o nosso velho caminho na rocha, que era a tradição, o costume, e a unidade brasileira.

Toda reforma precipitada era tempo perdido, podia importar em um desvio considerável dó verdadeiro rumo. De que servia fazer uma república em que o ideal republicano, desprezado pelos republicanos como pura ideologia, brilhasse menos do que na tradição liberal do Império? Serviria somente para desacreditar a idéia. E qual seria a posição dos próprios republicanos no dia em que a forma republicana representasse aos olhos do país não mais uma aspiração abstrata, uma aventura generosa, um lance de futuro arriscado, porém brilhante, mas, sim, um conjunto de erros, de violências e de abusos, um jogo estéril de ambições, uma lista de nomes vulgares, uma literatura de servilismo, a estagnação de um partido no poder, e o despotismo sem, ao menos, a glória, que compensa a liberdade na imaginação das raças ambiciosas?