O livro de Rocha Pitta traz um raro e precioso relato sobre os primeiros 224 anos de presença dos portugueses no Brasil. O trecho abaixo descreve o fim do Quilombo dos Palmares, em combates que chegaram ao ano de 1695. Rocha Pitta conta como, cercados depois de conseguirem resistir por décadas, os integrantes do quilombo são derrotados por uma poderosa força militar. Zumbi, o líder do grupo, se joga de um precipício para não ser preso.
A grafia usada foi atualizada.
O livro completo, disponibilizado gratuitamente pela editora do Senado, pode ser lido aqui.
“40. CHEGA NOSSO EXÉRCITO.- Chegou o nosso Exército, e caminhando a desfrutar aquelas Quintas, ou fazendas, as achou já sem frutos, nem legumes, porque os inimigos com militar discurso, colheram todos os que estavam sazonados, prevenindo-se para o cerco, e destruíram os que no curso deIe podiam amadurecer, e servir à nossa gente; e abandonando os Mocambos, se recolheram dentro da circunvalação da sua muralha, unindo neles todo o seu poder, com esperanças firmes de triunfar do nosso, que tantos anos os tinha tolerado, estando eles na posse de não serem na sua fortificação, acometidos.
41. FORMA QUE TOMA. – Dividido o nosso Exército em várias estâncias, se pôs na porta do meio o Capitão-mor Bernardo Vieira de Mello; a do lado direito encarregou ao Mestre de Campo dos Paulistas Domingos Jorge; e a do esquerdo ao Sargento-mor Sebastião Dias; os outros Cabos foi pondo em torno da muralha; por muitas partes dela se puseram escadas, que levavam prevenidas; mas subindo por elas, eram logo rechaçados pelos inimigos, assim com armas de fogo, e flechas, disparadas dos baluartes, como de água fervente, e brasas acesas, lançadas pela estacada, de que recebiam os nossos muitas mortes e feridas, pagando-as no mesmo troco aos inimigos, que podiam descobrir por qualquer daqueles lugares, repetindo-lhes os assaltos por todas as partes, para os trazerem em tão contínua fadiga, e desvelo, que lhes pudessem enfraquecer o ânimo, e embaraçar a disposição.
42. COMBATE INCESSANTEMENTE POR MUITOS DIAS A FORTIFICAÇÃO. – RESISTÊNCIA DOS NEGROS. – Continuando-se por muitos dias os combates, foi faltando aos negros a pólvora, que não podia ser muita, pois só tinham a que dos moradores seus confederados alcançaram, antes de se lhes mover a guerra, da qual não tendo tão antecipada notícia, como lhes era precisa, para recolherem os mantimentos necessários a um dilatado cerco, já neles experimentavam também diminuição, mas não na sua constância, que se aumentava com a porfia do nosso Exército, sobre o qual disparavam tantas nuvens de flechas, e tal chuveiro de armas arrojadiças, que faziam parecer escusadas as balas. A todas resistia a nossa gente; porém havendo batido as muralhas, e portas incessantemente. Com grande cópia de fortíssimos machados, e outros s instrumentos, sem efeito algum, e com perda de muita gente, pediram ao Governador Caetano ele Mello de Castro socorro de Soldados, e peças de artilharia, entendendo eles que sem elas seria impossível romper a fortificação dos inimigos.
43. RESPONDEU O GOVERNADOR AO AVISO QUE SE LHE FAZ PEDINDO SOCORRO. – A este aviso responde o Governador, que ficava convocando gente, e dispondo a carruagem de artilharia para ir em pessoa socorrê-los; mas esta notícia não fez cessar nos combates o nosso Exército; à custa dos muitos perigos e descômodos que experimentava, anelando conseguir aquela empresa que quanto mais difícil, lhe seria mais gloriosa, posto que conhecia carecer de maiores forças, e serem precisos canhões para bater a muralha. Fazia prevenções de víveres, por se lhe irem acabando os que trouxera, e já eram as rações inferiores à necessidade dos Infantes, demitindo os Cabos as próprias avantajadas porções, que aos seus postos eram devidas, em benefício dos seus Soldados.
44. VÃO AFROUXANDO OS NEGROS POR FALTA DE MANTIMENTOS. – Iam afrouxando os negros, faltos já das armas, que lançavam, e dos mantimentos, que consumiam, não podendo recorrer aos campos, que eram os seus celeiros, para levarem os de que mais ordinariamente se sustentavam, e só se mantinham na esperança de que o nosso Exército não podia permanecer muito tempo no assédio, pela diminuição da gente em que se achava, e pelos descômodos que padecia, pouco costumados os homens, depois da guerra dos Holandeses, a resistir às inclemências do tempo nas campanhas, além de lhes ficarem mui distantes as conduções dos víveres, de que já entendiam, que experimentavam falta, discursos, em que fundavam a suposição de que se lhes levantaria brevemente o sítio; porém logo o sucesso, que não premeditaram, lhes mostrou o contrário do que presumiram.
45. SOCORRO DE VÍVERES, QUE VEM AO NOSSO EXÉRCITO, E DESANIMAM-SE OS NEGROS. – Da sua eminência ou atalaia viram irem-se cobrindo os campos de gado maior, e menor, de carros, e cargas de cavalos, que das Vilas do Penedo, das Alagoas, e da Povoação de S. Miguel caminhavam ao nosso Exército em um grandíssimo comboio, que lhes chegava, de que começaram a inferir os negros a nossa persistência e a sua ruína, e totalmente desanimados, se empregavam mais no seu assombro, que na sua defesa, quando o nosso Exército com o socorro dos mantimentos, e de alguma gente, que os acompanhava, se punha a bater-lhes as portas da estacada com novo alento, e tal fortuna, que à força de machados, e braços lhe abriu o Sargento-mor Sebastião Dias a que lhe tocara, ao tempo que o Capitão-mor Bernardo Vieira rompia a em que estava, de que fez aviso ao Mestre de Campo dos Paulistas, que, residindo na outra muito distante, acudiu com incrível presteza a ser-lhe companheiro no perigo, e na glória.
46. ENTRA A NOSSA GENTE NA FORTIFICAÇÃO. – DESPENHAM-SE MUITOS NEGROS DA SUA EMINÊNCIA. – Entraram juntos, encontrando alguma resistência dos negros, inferior à que presumiram; porque o seu Príncipe Zumbi com os mais esforçados guerreiros, e leais súditos, querendo obviar o ficarem cativos da nossa gente, e desprezando o morrerem ao nosso ferro, subiram à sua grande eminência, e voluntariamente se despenharam, e com aquele gênero de morte mostraram não amar a vida na escravidão, e não querer perdê-la aos nossos golpes.
47. RENDEM-SE OS MAIS QUE SE ACHAM NELA. – CHEGA AO GOVERNADOR A NOVA DO NOSSO VENCIMENTO. – Todos os outros, que ficaram vivos, com o Grande número de mulheres, e crianças, em prantos inconsoláveis, e clamores excessivos, se renderam. Muitos dias gastou a nossa gente em discorrer pela Povoação, onde acharam muitos despojos pobres, sendo o mais importante o das ricas armas de todo o gênero, valerosamente exercidas, com grande polimento, e asseio tratadas. Fizeram os cabos logo no princípio aviso ao Governador Caetano de Mello e Castro, a quem os enviados acharam para partir no dia seguinte com o grande socorro, que tinha junto no Recife, em que levava dois mil homens, e seis peças de artilharia. Recebeu a. nova com públicas demonstrações, lançando de Palácio dinheiro ao Povo, e fazendo depois Procissão solene de ação de graças, posto que estimara mais ter parte da glória da peleja, fim para que dispuseram socorro, que estava para conduzir com a brevidade, com que o soube juntar.
48. LEVAM-SE OS NEGROS AO RECIFE. – Foram levados ao Recife os negros; e tirando-se deles os quintos pertencentes a El Rey, os mais ficaram, tocando aos cabos, e Soldados, conforme as presas, que fizeram quando entraram na sua fortificação. Todos os que eram capazes de fugir, e se rebelar, os transportaram para a outras Províncias do Brasil, e alguns se remeteram a Portugal. As mulheres, e crianças, pelo sexo, e pela idade livres daquela suspeita, ficaram em Pernambuco.”