A cidade de São Paulo teve seu marco inicial em 25 de janeiro de 1554, quando padres jesuítas se assentaram no planalto, no alto da Serra do Mar e à entrada do chamado sertão, onde se escondiam ameaças de todo o tipo. Nessa época, o número de cidades fundadas pelos portugueses no Brasil ainda cabia nos dedos das mãos. A expressão “cidades” é na verdade um anacronismo: essas povoações eram tão pequenas e em estado tão precário que mal mereciam o nome de vilas.
Os missionários jesuítas tiveram uma atuação fundamental no desbravamento do território brasileiro nos dois primeiros séculos do país. Esses sacerdotes, como José de Anchieta, prestavam contas regularmente (embora com grande intervalo de tempo, devido à dificuldade de comunicação) a seus superiores na Europa. Nesta carta, Anchieta descreve as dificuldades da vida em São Paulo (então “São Paulo de Piratininga”), fala da convivência com os indígenas e até mesmo da alimentação à base de farinha de mandioca.
A passagem abaixo é um trecho extraído de uma carta enviada por Anchieta aos padres jesuítas portugueses em 1555.
“Estamos, Padres e irmãos caríssimos, em esta Índia do Brasil, debaixo da obediência do nosso Reverendo em Cristo Padre Nóbrega, repartidos em quatro partes: em a cidade do Salvador, onde reside o Governador e o Senhor Bispo, e aí se tem cuidado de ensinar os meninos. Em a Capitania do Porto Seguro, donde um Padre nosso visita quatro povoações com muito trabalho e algumas vezes vai a uma que está daí a seis léguas, de que se espera muito fruto. Também aí há um Irmão que ensina a doutrina e a ler e escrever aos meninos. Esta Capitania do Porto Seguro está da cidade do Salvador 60 léguas. Em a Capitania do Espírito Santo há também uma casa da Companhia, donde por graça do Senhor se faz fruto em o pregar. Aí há muitos escravos e ensina-lhes a doutrina cristã. Esta Capitania está 120 léguas da cidade do Salvador. Em a a capitania de S. Vicente, que está da cidade do Salvador 220 léguas, há mais gente da Companhia que em nenhuma outra parte, donde se fez ajuntar o padre Nóbrega muitos meninos filhos de Índios, ensinaram-lhes a doutrina e a ler e escrever. Agora nos hemos passado a esta povoação de índios que se chama Piratininga donde estamos entre os índios. Dia da conversão de São Paulo dissemos a primeira missa em este lugar.
Agora com a ajuda de Nosso Senhor nos ocupamos em a doutrina destes índios e em rogar ao Senhor que abra a porta para a conversão de muitas nações de que temos novas e em que parece se fará muito fruto por não haver entre elas costume de comer carne humana. Estes índios, entre quem estamos agora, nos dão seus filhos para que os doutrinemos e por a manhã depois da lição, dizem ladainhas na igreja e à tarde a Salve; aprendem as orações em português e em a sua própria língua; e por graça do Senhor vêm muitos, assim homens como mulheres os domingos, à missa, e os que são catecúmenos se saem depois do ofertório. Importunam muito por o santo batismo, mas tem-se muito aviso de não batizados até haver deles muita experiência para que se tem desta terra. Alguns inocentes hão passado aqui desta vida batizados, os quais esperamos roguem por nos e por seus pais a nosso Senhor. Um índio principal que veio aqui de mais de cem léguas, a converter-se à nossa santa fé, morreu com sinais de bom cristão, recebida a água do batismo: este nos dizia muitas vezes que um filho seu inocente, o qual havia falecido batizado, lhe havia muitas vezes do Céu dito que deixasse os horrores da gentilidade e por sem dúvida tinha que o havia trazido aqui.
Estes índios têm grandíssimas guerras entre si, umas nações contra outras, o que é comum em toda a Índia do Brasil; e depois que aqui estamos foram à guerra e um dia antes da batalha fizeram uma cabana, segundo seu costume, onde puseram uma cabaça cheia ao modo de rosto humano, ataviada com plumas. Os feiticeiros que fazem isto chamam Pajés, para sacrificar-lhe e perguntar-lhe do sucesso da guerra, e como chamassem a nossos catecúmenos, eles responderam que tudo aquilo era grande falsidade e que eles esperavam a vitória de seu Deus; e ao dia seguinte aparecendo grande multidão de inimigos, começaram a desmaiar, e uma mulher já batizada do capelão desta povoação, que havia ido com seu marido, os começou a animar admoestando-lhes que fizessem o sinal da cruz em a frente e fazendo-o assim, os inimigos foram vencidos. Os catecúmenos deram grande sinal de ser inteira a sua intenção, porque aos inimigos que mataram, que dantes soíam comer com grandíssimas festas, deixaram enterrados- os quais desenterraram e comeram os mesmos de sua parte, porque tornaram ao lugar da batalha, como eles costumam pensando que esses eram dos contrários. Os que fazem estas feitiçarias que disse são mui apreciados dos índios, persuadem-lhes que em seu poder está a vida ou a morte; não ousam com tudo is o aparecer diante de nós outros, porque descobrimos suas mentiras e maldades.
Esperamos com a infinita misericórdia de Cristo Nosso Senhor que assim por os que cá estão, como por os que a santa obediência enviará, se porá remédio à cegueira em que estão tantas nações de índios, e creiam, caríssimos Irmãos, que ainda que em estas partes há faltas das cousas exteriores, que Nosso Senhor, a quem as quer assim, por seu amor dá muita alegria interior, o que se vê bem aqui, que desde Janeiro até agora estamos, sendo algumas vezes 20 pessoas, em uma casa feita de madeira e palha, a qual terá de comprido 14 passos e 10 de largo, que nos serve de escola, dormitório e refeitório, enfermaria e cozinha e despensa com recordar-nos que N. Senhor Jesus Cristo nasceu em um pobre presepe, entre dois animais e morreu em outro lugar mui mais estreito, estamos mui contentes nela e muitas vezes lemos a lição de gramática no campo.
O principal mantimento desta terra é uma farinha de pau, que se faz de certas raízes, que se chamam mandioca, as quais são plantadas e lavradas a este fim, e se se comem cruas ou assadas ou cozidas matam, porque é necessário deixá-las em água até que apodreçam, e depois de apodrecidas se fazem em farinha: este é o principal mantimento, com alguns legumes e folhas de mostarda. Também os índios nos dão algumas vezes alguma carne de caça, alguns peixes e muitas vezes Nosso Senhor de onde menos esperávamos nos socorre, e somos muito obrigados a sua bondade que em tanta falta das cousas corporais nos dá sanidade e forças.”