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José Bonifácio, Pronunciamento sobre a Escravatura (1823)

Nas linhas abaixo, José Bonifácio (então membro da Assembleia Constituinte do Império) faz um brilhante pronunciamento contra a escravidão, que só viria a ser abolida mais de seis décadas depois. O pronunciamento acompanhava uma proposição para que o Brasil fizesse uma libertação gradual dos escravos. Mas o discurso não chegou a ser feito porque a Assembleia Constituinte foi desfeita pelo imperador Dom Pedro I, impaciente com a demora dos parlamentares em apresentar o resultado final de seus trabalhos. Ainda assim, dada a importância do documento, ele foi publicado ainda em 1825.

José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838)

“Chegada a época feliz da regeneração política da Nação Brasileira, e devendo todo o cidadão honrado e instruído concorrer para tão grande obra, também eu me lisonjeio que poderei levar ante a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa algumas idéias, que o estudo e a experiência têm em mim excitado e desenvolvido.

Como cidadão livre e deputado da Nação, dois objetivos me parecem ser, fora a Constituição, de maior interesse para a prosperidade futura deste Império.

O 1º é um novo regulamento para promover a civilização geral dos índios no Brasil, que farão com o andar do tempo inúteis os escravos; cujo esboço já comuniquei a esta Assembleia. 2º – Uma nova Lei sobre o Comércio da escravatura, e tratamento dos miseráveis cativos. Este assunto faz o objeto da atual representação. Nela me proponho mostrar a necessidade de abolir o tráfico da escravatura, de melhorar a sorte dos atuais cativos, e de promover a sua progressiva emancipação.

Quando verdadeiros cristãos e filantropos levantaram a voz pela primeira vez em Inglaterra contra o tráfico de escravos africanos, houve muita gente interesseira ou preocupada, que gritou ser impossível ou impolítica semelhante abolição porque as colônias britânicas não podiam escusar um tal comércio sem uma total destruição; todavia, passou o Bill (N.E.: ato governamental, em inglês), e não se arruinaram as colônias. Hoje em dia, que Wilberforces e Buxtons trovejam de novo no Parlamento a favor da emancipação progressiva dos escravos, agitam-se outra vez os inimigos da humanidade como outrora; mas, espero da justiça e generosidade do povo inglês, que se conseguirá a emancipação, como já se conseguiu a abolição de tão infame tráfico. E porque os brasileiros somente continuarão a ser surdos aos gritos da razão, e da religião cristã, e direi mais, da honra e brio nacional? Pois somos a única nação de sangue europeu que ainda comercia clara e publicamente em escravos africanos.

Eu também sou cristão e filantropo; e Deus me anima para ousar levantar a minha fraca voz no meio desta augusta Assembleia a favor da causa da justiça, e ainda da sã Política, causa a mais nobre e santa que pode animar corações generosos e humanos.

Legisladores, não temais os urros do sórdido interesse: cumpre progredir sem pavor na carreira da justiça e da regeneração política; mas todavia cumpre que sejamos precavidos e prudentes. Se o antigo Despotismo foi insensível a tudo, assim lhe convinha ser por utilidade própria: queria que fossemos um povo mesclado e heterogêneo, sem nacionalidade, e sem irmandade, para melhor nos escravizar. Graças aos Céus, e à nossa posição geográfica, já somos um povo livre e independente.

Mas, como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos? Comecemos pois desde já esta grande obra pela expiação de nossos crimes e pecados velhos. Sim, não se trata somente de sermos justos, devemos também ser penitentes; devemos mostrar à face de Deus e dos outros homens, que nos arrependemos de tudo o que nesta parte temos obrado há séculos contra a justiça e contra a religião, que nos bradam acordes que não façamos aos outros o que queremos que não nos façam a nós. É preciso pois que cessem de uma vez os roubos, incêndios e guerras que fomentamos entre os selvagens d’África. É preciso que não venham mais a nossos portos milhares e milhares de negros, que morriam abafados no porão de nossos navios, mais apinhados que fardos de fazenda; é preciso que cessem de uma vez todas essas mortes e martírios sem conta, com que flagelávamos e flagelamos ainda esses desgraçados em nosso próprio território.

É tempo, pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carniceiro; é tempo também que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes.

É da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil; cuidemos desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um Todo homogêneo e compacto, que se não esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política. Mas que ciência química e que dexteridade  não são precisas aos operadores de tão grande e difícil manipulação? Sejamos pois sábios e prudentes, porém constantes sempre.

Com efeito, senhores, nação nenhuma talvez pecou mais contra a humanidade do que a portuguesa de que fazíamos outrora parte. Andou sempre devastando não só as terras d’África e d’Ásia, como disse Camões, mas igualmente as do nosso país. Foram os portugueses os primeiros que, desde o tempo do infante d. Henrique, fizeram um ramo de comércio legal de prear homens livres, e vendê-los como escravos nos mercados europeus e americanos. Ainda hoje perto de quarenta mil criaturas humanas são anualmente arrancadas d’África, privadas de seus lares, de seus pais, filhos e irmãos, transportadas às nossas regiões, sem a menor esperança de respirarem outra vez os pátrios ares, e destinadas a trabalhar toda a vida debaixo do açoite cruel de seus senhores, elas, seus filhos e filhos de seus filhos para todo o sempre!

Se os negros são homens como nós, e não formam uma espécie de brutos animais, se sentem a pensão como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam eles à imaginação de qualquer homem sensível e cristão? Se os gemidos de um bruto nos condoem, é impossível que deixemos de sentir também certa dor simpática com as desgraças e misérias dos escravos; mas tal é o efeito do costume, e a voz da cobiça, que vêm homens correr lágrimas de outros homens, sem que estas lhes espremam dos olhos uma só gota de compaixão e de ternura.

Mas a cobiça não sente nem discorre como a razão e a humanidade. Para lavar-se pois das acusações que merecia lançou sempre mão, e ainda agora lança, de mil motivos capciosos, com que pretende fazer a sua apologia: diz que é um ato de caridade trazer escravos d’África, porque assim escapam esses desgraçados de serem vítimas de despóticos régulos; diz igualmente que, se não viessem esses escravos, ficariam privados da luz do Evangelho, que todo cristão deve promover e espalhar; diz que esses infelizes mudam de um clima e país ardente e horrível para outro doce, fértil e ameno; diz por fim que devendo os criminosos e prisioneiros de guerra serem mortos imediatamente pelos seus bárbaros costumes, é um favor, que se lhes faz, comprá-los, para lhes conservar a vida, ainda que seja em cativeiro.

Homens perversos e insensatos! Todas essas razões apontadas valeriam alguma coisa, se vós fosseis buscar negros à África para lhes dar liberdade no Brasil, e estabelecê-los como colonos; mas perpetuar a escravidão, fazer esses desgraçados mais infelizes do que seriam se alguns fossem mortos pela espada da injustiça, e até dar azos certos para que se perpetuem tais horrores, é de certo um atentado manifesto contra as leis eternas da justiça e da religião.

E por quê continuarão e continuam a ser escravos os filhos desses africanos: Cometeram eles crimes? Foram apanhados em guerra? Mudaram de clima mau para outro melhor? Saíram das trevas do paganismo para a luz do Evangelho? Não, por certo, e todavia seus filhos, e filhos desses filhos, devem, segundo vós, ser desgraçados para todo o sempre.

Fala pois contra vós a justiça e a religião, e só vós podeis escorar no bárbaro direito público das antigas nações, e principalmente na farragem das chamadas leis romanas: com efeito, os apologistas da escravidão escudam-se com os gregos e romanos, sem advertirem que entre os gregos e romanos não estavam ainda bem desenvolvidos e demonstrados os princípios eternos do Direito Natural, e os divinos preceitos da religião; e todavia, como os escravos d’então eram da mesma cor e origem dos senhores, e igualmente tinham a mesma, ou quase igual civilização que a de seus amos, sua indústria, bom comportamento e talentos os habilitavam facilmente a merecer  o amor de seus senhores, e a consideração dos outros homens; o que de nenhum modo pode acontecer em regra aos selvagens africanos.

Se ao menos os senhores de negros no Brasil tratassem esses miseráveis com mais humanidade, eu certamente não escusaria, mas ao menos me condoeria da sua cegueira e injustiça; porém o habitante livre do Brasil, e mormente o europeu, é não só, pela maior parte, surdo às vozes da justiça e aos sentimentos do Evangelho, mas até é cego a seus próprios interesses pecuniários, e à felicidade doméstica da família.

Com efeito, imensos cabedais saem anualmente deste Império para a África; e imensos cabedais se amortizam dentro deste vasto país, pela compra de escravos, que morrem, adoecem, e se inutilizam, e demais pouco trabalham. QUe luxo inútil de escravatura também não apresentam nossas vilas e cidades, que sem ele poderiam limitar-se a poucos e necessários criados? Que educação podem ter as famílias que se servem destes entes infelizes, sem honra nem religião? de escravas, que se prostituem ao primeiro que as procura? Tudo porém se compensa nesta vida; nós tiranizamos os escravos e os reduzimos a brutos animais, e eles nos inoculam toda a sua imoralidade, e todos os seus vícios.

E na verdade, senhores, se a moralidade e a justiça social de qualquer povo se fundam, parte nas suas instituições religiosas e políticas, e parte na Filosofia, para dizer assim, doméstica de cada família, que quadro pode apresentar o Brasil, quando o consideramos debaixo destes dois pontos de vista? Qual é a religião que temos, apesar da beleza e santidade do Evangelho, que dizemos seguir? A nossa religião é pela maior parte um sistema de superstições e abusos anti-sociais; o nosso clero, em muita parte ignorante e corrompido, é o primeiro que se serve de escravos, e os acumula para enriquecer pelo comércio, e pela agricultura, e para formar, muitas vezes, das desgraçadas escravas, um harém turco.

As famílias não têm educação, nem a podem ter com o tráfico de escravos, nada as pode habituar a conhecer e amar a Virtude e a Religião. Riquezas e mais riquezas gritam os nossos pseudo-estadistas, os nossos compradores e vendedores de carne humana; os nossos sabujos eclesiásticos; os nossos magistrados, se é que se pode dar um tão honroso título a almas, pela mor parte, venais, que só empunham a vara da justiça para oprimir desgraçados, que não podem satisfazer a sua cobiça, ou melhorar a sua sorte.

E então, senhores, como pode regular a justiça e a virtude, e florescerem os bons costumes, entre nós? Senhores, quando me emprego nestas tristes considerações, quase que perco de todo as esperanças de ver o nosso Brasil um dia regenerado e feliz, pois que se me antolha que a ordem das vicissitudes humanas está de todo invertida no Brasil. O luxo e a corrupção nasceram entre nós antes da civilização e da indústria; e qual será a causa principal de um fenômeno tão espantoso? A escravidão, senhores, a escravidão, porque o homem, que conta com os jornais de seus escravos, vive na indolência, e a indolência traz todos os vícios após si.

(…)

Ouvi, pois, torno a dizer, os gemidos da cara Pátria, que implora socorro e patrocínio; pelejemos denodadamente a favor da razão e da humanidade, e a favor de nossos próprios interesses. Embora contra nós uive e ronque o egoísmo e a vil cobiça, sua perversa indignação, e seus desentoados gritos sejam para nós novos estímulos de triunfo, seguindo a estrada limpa da verdadeira política, que é filha da Razão e da Moral.

E vós, traficantes de carne humana, vós senhores injustos e cruéis, ouvi com rubor e arrependimento, se não tendes pátria, a voz imperiosa da consciência, e os altos brados da impaciente humanidade; aliás, mais cedo talvez do que pensais, tereis que sofrer terrivelmente da vossa voluntária cegueira e ambição; pois o castigo da Divindade, se é tardio às vezes, decerto nunca falta. E qual de vós quererá ser tão obstinado e ignorante, que não sinta que o cativeiro perpétuo é não somente contrário à religião e à sã política, mas também contrário aos vossos futuros interesses, e à vossa segurança e tranqüilidade pessoal?

Generosos cidadãos do Brasil, que amais a vossa Pátria, sabei que sem a abolição total do infame tráfico da escravatura africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o Brasil firmará a sua independência nacional, e segurará e defenderá a sua liberal Constituição; nunca aperfeiçoará as raças existentes, e nunca formará, como imperiosamente o deve, um exército brioso, e uma marinha florescente. Sem liberdade individual não pode haver civilização nem sólida riqueza; não pode haver moralidade, e justiça, e sem estas filhas do Céu, não há nem pode haver brio, força e poder entre as nações.”