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Manuel de Campos Sales, Política (1908)

Manuel de Campos Sales presidiu o Brasil de 1898 a 1902. Ele foi o quarto chefe de Estado da República. Sua gestão se notabilizou pelos acertos na política econômica e pela defesa do sistema federalista, no qual os estados têm uma autonomia significativa. É disto que trata o trecho abaixo, que faz parte das memórias do político paulista. Elas foram publicadas sob o título de “Campos Sales – da Propaganda à Presidência”.

Manuel de Campos Sales (1841-1913)

“Ninguém contesta que entre os Estados da Federação sejam fundamentalmente os mesmos os costumes, as tradições, a língua, a coloração moral e as grandes aspirações nacionais. O que, porém, igualmente não oferece contradita é que a solidariedade étnica se acha mais ou menos profundamente perturbada pela disparidade, senão antagonismo dos interesses peculiares às regiões em que se divide o vasto território nacional. Dessa manifesta ausência de coesão dos elementos econômicos e consequentemente das forças locais, resulta a toda evidência que não pode servir de garantia à unidade nacional nem ao acordo dos grandes interesses, a existência de um poder supremo no centro, dominando, absorvendo o avassalando todas as energias da periferia. Essa garantia só se encontra na harmônica e espontânea cooperação com que cada uma dessas forças concorre, na esfera de sua ação autonômica, para o desenvolvimento da vida nacional. É nessa cooperação espontânea, sem antagonismos, que verdadeiramente se estabelece o acordo dos interesses gerais; é nela, portanto, que reside a única garantia solida da unidade nacional. Cortar este laço de interesses, que fortifica a união moral dos diversos elementos em que se divide a nação, é criar todos os estímulos de desagregação e fazer gerar a aspiração separatista. Foi o que sucedeu nos últimos tempos do Império, surgindo à tona das agitações politicas o programa de federação, que aproximou alguns dos homens da monarquia aos propagandistas da república federativa.

O presidente dos Estados Unidos do Norte, referindo- se aos erros que cometeram os gregos e os romanos —os dois povos da antiguidade que mais se celebrizaram pela sua ação colonizadora -e ao êxito que no mesmo terreno alcançaram modernamente os americanos, salienta que, nos gregos, a unidade de raça fora sacrificada à independência local, e o resultado foi que o mundo grego se tornara a presa fácil dos conquistadores estrangeiros: ao passo que os romanos conservaram a unidade nacional, mas somente por meio de um despotismo centralizado, e o resultado foi o esfacelamento que a história aponta. Os americanos encontraram na Constituição Federal um instrumento quase perfeito. O sistema que institui um laço de união apertado, indestructível, entre repúblicas livres (os Estados federados), tornou-os capazes de realizar o que nem os gregos nem os romanos puderam conseguir nos maiores dias da sua existência. Os americanos conservam a completa unidade de uma raça expansionista, sem alterar no mínimo grau a liberdade do indivíduo. Chegamos, afirma o enérgico estadista, a aceitar como axiomáticos os dois fatos —a união nacional e a liberdade local e pessoal.

Esta afirmação categórica, após a experiência de mais de um seculo, e pelo órgão mais genuíno do sentimento nacional, protesta eloquentemente contra a falsa suposição de que o regime federativo representa um dos momentos, uma das fases, um dos estágios da evolução da gente anglo-saxônica da América, no seu caminhar para a unidade. O que a agregação de repúblicas livres (os Estados federados) ali representa em definitiva, é, sim, a perpétua garantia da indissolubilidade da União sob o regime permanente da soberania local.

Diante, porém, do valioso exemplo, que esmaga todas as objeções debaixo da sua autoridade secular, surge a questão de raça. Mas, então, sejamos lógicos e aceitemos resignados a condenação tremenda que decorre do princípio. Confessemos a nossa incapacidade para o regime de liberdade, renunciemos consequentemente aos beneficios do sistema representativo e proclamemos, submissos, a utilidade do absolutismo, encarnado em um único poder no centro, absorvendo e eliminando todas as forças do cidadão. Tais são as iniludíveis consequências do argumento que repousa sobre a incapacidade da nossa raça. Eliminem-se as vinte tiranias, e ficará implantada, em lugar delas, a mais implacável, a mais formidável, a mais abominável de todas as tiranias – a tirania do centro.

Parece que é cedo ainda para termos perdido a lembrança do passado. Os que clamam apaixonada mente pelo unitarismo mostram ter perdido a memória dos factos do Império centralizado, que despertaram ao senador Nabuco de Araújo o famoso sorites , síntese luminosa e pungentíssima do clamor nacional contra o opressivo centralismo monárquico, e inspiraram também ao inolvidável Tavares Bastos as páginas de apaixonada eloquência do seu livro monumental, A Província, eco vibrante das angústias das províncias do Império, aniquiladas e exaustas sob o jugo tirânico de mortífero centralismo. Os que hoje declamam contra o poder dos governadores dos Estados, esquecem, talvez, o que foram os famigerados pro consules de outrora, enviados às províncias, como meros agentes da política subalterna do governo imperial, com a missão de executar empreitadas eleitorais, à custa, embora, das mais barbaras atrocidades.

É preciso recordar aos unitaristas de agora, que clamam contra a compressão do voto nos Estados, aquela política de abstenção que o governo do Impe rio impôs aos partidos em oposição, desde que alcançou convencê-los da inutilidade da luta contra a baio neta da polícia e contra a garrucha do capanga. É oposição a estas funestas tradições da monarquia centralista, a este ominoso legado de costumes, por nós recebidos do regime decaído, que se deve estimular a reação dos sentimentos populares e o estigma da opinião. « A abdicação da sua autonomia pela nação, disse J. de Alencar, não é um fenômeno recente. Seu traço vem de longe; em 1848 já se desenha saliente na história da pátria.» Não é, portanto, logico atribuir às instituições o que não tem sido sinão um vício radicado nos costumes.

Sustentei outrora que as instituições reformam os costumes. Hoje reconheço que nutria uma quimera, e estou com aqueles que pensam que “as mudanças sociais não se fazem a golpes de decretos.” É certo , entretanto , que costumes e instituições exercem entre si influência recíproca, e isto adverte que o papel do legislador é o de observador atento dos fenômenos sociológicos que se vão desenrolando no seu meio, a fim de intervir oportunamente e com eficácia, ou seja para reprimir instintos perversos, ou seja para abrir caminho às expansões de sentimentos altruísticos. A sofreguidão reformista, às mais das vezes, não concorre sinão para introduzir a anarquia na legislação. A ideia da descentralização está no sentimento brasileiro, atesta – o a sua história. Cumpre deixá-la expandir – se ao calor vivificante da Constituição republicana.”