O sociólogo Gilberto Freyre é um dos autores que melhor enxergou a essência da identidade brasileira. Sua atuação ajudou a consolidar um estudo mais aprofundado sobre as origens do povo brasileiro e suas peculiaridades. No trecho abaixo de Casa Grande e Senzala, Freyre explica como a fé, particularmente a fé católica, foi um elemento unificador na história brasileira.
“Na falta de sentimento ou da consciência da superioridade da raça, tão salientes nos colonizadores ingleses, o colonizador do Brasil apoiou-se no critério da pureza da fé. Em vez de ser o sangue foi a fé que se defendeu a todo transe da infecção ou contaminação com os hereges. Fez-se da ortodoxia uma condição de unidade política. Mas não se deve confundir esse critério de profilaxia e de seleção, tão legítimo à luz das idéias do tempo como o eugênico dos povos modernos, com a pura xenofobia.
Handelmann faz do colonizador português do Brasil quase um xenófobo por natureza. Mas os antecedentes portugueses contradizem essa suposta xenofobia; nega-a a história do direito lusitano – nesse ponto dos mais liberais da Europa. Tão liberal que nele não figuram nunca o direito de albinágio, o de detração e o de naufrágio.
Em outras palavras: o de apropriar-se o Estado da sucessão dos estrangeiros mortos em seu território com exclusão de herdeiros e legatários (albinágio); o de deduzir-se o imposto na quarta parte dos bens exportados dos estrangeiros falecidos no país (detração); o de se apoderarem reis e senhores das pessoas e cousas naufragadas no mar e nos rios (naufrágio).
O Direito português iniciou-se, não sufocando e abafando as minorias étnicas dentro do reino – os mouros e os judeus – suas tradições e costumes, mas, reconhecendo-lhes a faculdade de se regerem por seu direito próprio e até permitindo-lhes magistrados à parte, como mais tarde no Brasil colonial, com relação aos ingleses protestantes.
Nas Ordenações Afonsinas, que Coelho da Rocha no seu Ensaio sobre a história da legislação de Portugale Cândido Mendes em Introdução ao Código Filipino salientam ter sido o primeiro código completo de toda a Europa depois da Idade Média, recolheu-se do direito oraleiro e costumeiro a tendência para conceder privilégios a mouros e judeus. Tendência que cedeu, nas Ordenações Manuelinas, à pressão de preconceitos religiosos, então inflamados; mas nunca à da pura xenofobia. Tanto que as vantagens aí concedidas a estrangeiros católicos seriam depois pleiteadas pelos próprios nacionais. É que a luta contra os mouros, como mais tarde o movimento separatista de que resulta a Independência, são eles mesmos favoráveis ao cosmopolitismo que se desenvolve no português ao lado, e em harmonia, com seu precoce nacionalismo. De modo que a nenhum desses dois ódios ou antagonismos – o ódio ao mouro e o ódio ao espanhol – pode-se atribuir ter atuado no português em um só sentido e este inferior: o de crispá-lo. O de estreitar-lhe o espírito nacional. O de ouriçar-lhe o caráter de cacos de vidro contra tudo e contra todos.
Na falta de grandes fronteiras naturais ou físicas, defendendo-se de agressões e absorções, tiveram os portugueses de entesar-se em muralhas vivas, de carne, contra o imperialismo muçulmano e mais tarde contra o de Castela; mas nesse próprio esforço de suprir com pura resistência ou tensão humana a quase nenhuma defesa geográfica – a falta de grande rio ou montanha – valeram-se do concurso de estrangeiros. Tanto nas Cruzadas como nas guerras de independência esse concurso se fez sentir de maneira notável. É o que explica no português não só seu nacionalismo quase sem base geográfica como o cosmopolitismo. Cosmopolitismo favorecido, este sim, em grande parte, pela situação geográfica do reino: a de país largamente marítimo, desde remotos tempos variando de contatos humanos. Por um lado, recebendo em suas praias sucessivas camadas ou simples, mas frequentes, salpicos de povos marítimos. Por outro lado, indo seus navegantes, pescadores e comerciantes às praias e águas alheias comerciar, pescar e farejar novos mercados.”