O conceito de justiça sempre permeou as sociedades humanas e foi discutido por meio de obras filosóficas e literárias – em alguns casos, uma mistura de ambas. Neste texto, faremos uma análise do conceito de justiça expresso em A República de Platão, principalmente no Livro I, traçando um paralelo entre o conceito de justiça apresentado no anime japonês Cavaleiros do Zodíaco – Sainta Seiya, de 1986, de Masami Kurumada.
O objetivo é demonstrar como as falas de personagens de ambas as obras podem apresentar uma visão equivocada sobre o entendimento da justiça e, concomitantemente, apresentar as respostas apresentadas nos respectivos trabalhos, de modo a melhor compreender o legado da filosofia platônica acerca desta questão.
A República
Em A República, os personagens iniciam a conversa na residência de Polemarco, no Pireu, localidade próxima a Atenas. Logo de início, Sócrates inicia o diálogo com Céfalo, pai de Polemarco, um homem idoso, que ficou entusiasmado com a presença do filósofo no ambiente. Céfalo apresenta seu entendimento sobre a justiça argumentando que esta consiste em não enganar ninguém e dar a cada um o que lhe é devido. Sócrates inicia sua explanação dando o exemplo de que entregar uma faca a um louco, passível de ferir outras pessoas, simplesmente por pertencer a ele, não seria o justo e seria uma ação de consequências ruins. Observa-se que, já no primeiro argumento apresentado, Sócrates apresenta a sua forma dialética de discussão, buscando refutar teses que apresentem pontos falhos.
Após isso, Céfalo sai de cena e seu filho Polemarco assume a discussão com o filósofo. Este evoca o argumento do poeta Simônides que defende que a justiça consiste em beneficiar os amigos e prejudicar os inimigos, favorecer os que nos parecem leais e lesar os que nos parecem hostis. Sócrates refuta, prontamente, demonstrando o problema das aparências, pois pessoas que parecem ser amigas podem ser más e supostos inimigos podem ser bons. A justiça não pode depender de aparências e fazer mal a alguém pode fazer com que esta pessoa se torne pior. Para ele, a justiça não pode produzir injustiças; ela deve promover o bem e a virtude nos indivíduos.
A partir deste momento, começa a participar do debate o sofista Trasímaco de Calcedônia. Os sofistas na Grécia Antiga eram profissionais que dominavam a retórica e a oratória. Relativistas, não acreditavam em verdades absolutas, apenas na conveniência das circunstâncias e na utilização da persuasão para atingir os próprios fins, inclusive vendendo seus serviços. As primeiras falas de Trasímaco já carregam um tom afrontoso e coercitivo contra Sócrates.
Ao iniciar seu argumento, Trasímaco afirma que a justiça é a vantagem do mais forte. Segundo ele, o Estado é quem faz e aplica as leis e, em consequência disso, os governos são a representação dos grupos mais fortes dentro de uma sociedade. Sócrates se opõe a esse posicionamento fazendo uma explanação semelhante àquela que apresentou a Polemarco. Segundo o filósofo, os governantes podem criar leis que contrariam os próprios interesses e seguir essas leis seria o mesmo que contrariar o interesse do mais forte. A Justiça, como definição, deve ser algo superior, de modo a ser um parâmetro de avaliação das leis, e não uma mera reverberação delas.
Trasímaco retruca afirmando que o injusto é mais forte e, se eventualmente ele executar leis contrárias a ele, naquele momento não representará o mais forte. Além disso, afirma que a injustiça em larga escala, praticada por quem se apropria do Estado, é mais lucrativa e mais forte. Cita inclusive uma analogia do pastor que cuida das ovelhas para posteriormente sacrificá-las. Logo, para ele, a injustiça representa força e sabedoria. E o justo, na posição de obedecer e se sacrificar, acaba sempre em desvantagem ao injusto.
Sócrates demonstra para ele que toda arte, entendida como técnica, visa o bem do objeto que se aplica, não o bem do praticante. A medicina visa a saúde do paciente, a navegação visa a segurança da embarcação e seus tripulantes. Um benefício advindo não pode servir para caracterizar uma arte, pois é algo comum de todas; além disso, elas podem ser realizadas independentemente disso. Desta forma, a verdadeira natureza da arte de governar é a de promover o bem comum, de buscar a justiça e os interesses da coletividade.
Importante destacar que Sócrates defende a justiça como uma virtude da alma que gera ordem e cooperação. A ausência dela, a injustiça, gera desordem interna e conflito permanente. Isso se aplica tanto individualmente como coletivamente. Por exemplo, mesmo em um grupo de ladrões é necessário algum nível de justiça para que seja possível um mínimo de coordenação. A injustiça absoluta leva à autodestruição.
Após refutar todos os argumentos apresentados inicialmente, Sócrates passa a ser desafiado por Glauco e Adimanto para realizar uma definição positiva do conceito de justiça. Para isso, ele explica como deve ser a justiça na cidade, quando cada parte da alma cumpre a sua própria função. Composta por governantes (sabedoria), guardiões (coragem, ímpeto) e produtores (moderação, desejos). Se cada classe cumprir a sua função, sem usurpar a função das outras, ocorre o equilíbrio social.
Cavaleiros do Zodíaco
Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya) é um mangá e anime japonês criado por Masami Kurumada, em 1986. A história, permeada de elementos da mitologia grega (e também outras culturas), retrata a reencarnação da deusa Atena – Saori Kido, que de tempo em tempo vem à Terra para defender a humanidade contra a ameaça de outros deuses, como Hades e Poseidon. Para isso, ela conta com cavaleiros, classificados como de ouro, prata e bronze, para realizar a sua defesa.
Entretanto, nesta história inicial, o perigo não vem de outros deuses, mas sim de um cavaleiro de ouro: Saga de Gêmeos. Este assassinou o Grande Mestre do Santuário e passou a assumir a identidade pública dele. Neste papel, passou a realizar uma conspiração, persuadindo cavaleiros de ouro e prata de que Saori Kido seria uma farsante que representava uma ameaça ao Santuário, enviando-os para assassiná-la e, assim, se tornar o governador deste mundo.
Saori Kido, deusa Atena, contava apenas com cinco cavaleiros de bronze, que reconheciam sua natureza divina. Estes representam o arquétipo do herói, pois mesmo com poderes inferiores a outros cavaleiros, lutam com coragem e bravura para defender Saori e o futuro da humanidade.
Neste contexto, em que ocorrem lutas entre poderosos cavaleiros ludibriados e os que resistiam em prol deusa, surge um personagem que destoa dos demais: Máscara da Morte, cavaleiro de ouro de câncer. Enquanto outros tiveram que ser persuadidos ou mesmo sofrerem golpes para a retirada da consciência, Máscara da Morte atua de maneira intencional em prol da conspiração por entender este grupo como sendo o mais forte. O Grande Mestre o envia para assassinar Shiryu, cavaleiro de bronze, e o seu mentor Mestre Ancião, Dohko – que posteriormente seria revelado como cavaleiro de libra.
Quando de Máscara da Morte chega ao local determinado e depara-se com a figura do Mestre Ancião, é possível perceber a construção dos arquétipos pelo autor. De um lado, o mau que se apresenta de uma forma imponente e ameaçadora; de outro, a figura do Velho Sábio, comumente representada em mitos, contos e cultura pop, descrita inclusive na psicologia de Carl Jung. Ele representa sabedoria, transcendência e conhecimento superior, sendo o guia conselheiro do herói em sua jornada.
Ao iniciar o diálogo entre ambos, o cavaleiro de câncer deixa claro que tinha ciência da conspiração dentro do Santuário e não estava sendo ludibriado. Acatava as ordens emanadas por acreditar que o grupo que se rebelava seria o mais forte e, consequentemente, o mais vantajoso. Nas palavras dele: “As definições de justiça mudam com o passar do tempo, isso é uma coisa que a história já provou. O que Ares [Saga de Gêmeos] pretende fazer agora pode ser diabólico, mas, vencendo, ele será o justo. Ou seja, Mestre, o errado pode se tornar o certo, se o senhor perder o injusto passa a ser o senhor. Está entendendo, Mestre Ancião? ”.
Para o cavaleiro de câncer, a justiça é o poder do mais forte. Percebe-se na fala dele, também, a legitimação do poder consolidado, da burocracia, do poder estatal que o grande Mestre representa. Pouco importa se Saga é um usurpador do poder e se Saori Kido é a verdadeira deusa Atena. O que interessa a ele é que o grupo dos cavaleiros mais poderosos estava deste lado e que Saga estava legitimado na liderança. Não há nele nenhuma compreensão superior do que seja a justiça, apenas uma análise e adequação das circunstâncias mais benéficas.
Mestre Ancião ao verificar as falas do cavaleiro de câncer, demonstra total rejeição ao seu posicionamento. Para ele, a defesa da justiça não depende das circunstâncias, mas sim de princípios. Ele afirma: “Seu tolo! A injustiça nunca se torna justiça. E é a própria história humana que prova que isso é verdade. Os impérios que possuíam exércitos poderosos foram derrotados e sumiram do fluxo da história. Esse é o destino das forças do mal. O mal nunca deixará de ser o que é.”
Ou seja: no posicionamento dele, é possível observar os elementos de uma ética superior, apresentando a justiça como um tipo ideal e recusando o poder circunstancial como forma de legitimação. Além disso, a fidelidade à deusa também pode ser compreendida como uma representação da fé e de valores espirituais, tendo em vista que a oposição entre poderes mundanos e divinos é expressada em muitas religiões, inclusive no cristianismo.
A partir desse momento, chega à cena Shiryu, o arquétipo do herói, e inicia-se a luta contra Máscara da Morte. Mesmo sendo de uma categoria de poder inferior, este demonstra coragem e bravura no enfrentamento ao perigo. No entanto, com a chegada do Cavaleiro de Ouro Mú de Áries, o Cavaleiro de Câncer sai em retirada.
Conclusão
O que podemos observar desses diálogos é que Trasímaco e Máscara da Morte apresentam conceitos sobre a justiça com muitas semelhanças. Para eles, a justiça é a aplicação do poder do mais forte sobre os demais. Enquanto o agente tiver a força, todas as suas ações serão interpretadas como a justiça. Justiça e aplicação forma judiciária passam a ter o mesmo significado. Os personagens de destaque, Trasímaco e Máscara da Morte, apesar de possuírem ofícios distintos (um é um sofista e o outro um guerreiro corrompido), têm em comum a ausência de um ideal de verdade, colocando como norte de suas perspectivas o mero interesse pessoal.
Por outro lado, Mestre Ancião e Sócrates têm muitas semelhanças em seus posicionamentos. Ambos defendem a justiça como harmonia das partes da alma na cidade (ou seja, uma alma ordenada internamente para ser justo), bem como o cumprimento do papel de cada um na cidade. Além disso, o conceito defendido por eles se mostra transcendental como algo verdadeiro e absoluto. A injustiça, como Sócrates explicou, não pode vencer a justiça, pois a sua natureza gera desordenança.
A partir da análise destas obras, fica clara a importância da reflexão acerca do que é a justiça pois, em quaisquer sociedades humanas, há a possibilidade de o conceito de justiça se apresentar de forma deturpada, alterando diretamente o equilíbrio social.
Apesar de o conceito na obra de Platão apresentar elaboração distinta à do anime, mais voltado para o público infantil, muitos elementos em comum podem ser observados. O intervalo de tempo entre as obras ultrapassa milênios. Todavia, a natureza humana continua a apresentar aspectos semelhantes e daí advém a importância dos clássicos. Tanto a filosofia quanto as obras artísticas podem fornecer elementos que podem ajudar a interpretar a realidade cotidiana bem como traçar direcionamentos para a vida prática.