Nenhuma lei, portaria ou resolução está acima da Constituição Federal. Nenhum membro do Legislativo, Executivo ou Judiciário está acima da Constituição Federal. A Constituição, com suas virtudes e defeitos, representa a vontade popular porque foi escrita por representantes diretos do povo. É o marco inicial que assegura direitos e estabelece deveres.
No caso dos servidores públicos, um dos deveres é de jamais fazer algo que não esteja explicitamente previsto em lei. É o chamado princípio da legalidade. Ele existe justamente porque, se o poder político emana do povo, nada é possível fazer sem o consentimento dele (leia-se: sem que a Constituição e as leis assim permitam).
O presidente da República, um senador e um ministro do STF podem ter a ideia mais genial do mundo. Ainda assim, se essa ideia não for referendada pelo processo democrático, continuará sendo apenas uma ideia. A genialidade ou a pureza de intenções não dão a eles o direito de ignorar o que dizem as leis.
Os princípios listados acima são fundamentais para qualquer República. Mas, nos últimos meses, parte do Judiciário brasileiro tem descumprido essas regras elementares repetidas vezes. Pior: a falta de zelo tem partido justamente das cortes mais altas.
Por exemplo: a postura autoritária adotada pelo Tribunal Superior Eleitoral nos últimos meses não tem respaldo constitucional. A corte, que é formada por três ministros do STF, dois ministros do Superior Tribunal de Justiça e dois advogados, aumentou os próprios poderes e arrogou para si o papel de decidir o que é verdade e o que não é. Quando o TSE suspeita que alguma afirmação não é verdadeira, aplica o carimbo de “fake news” e manda que o conteúdo seja retirado do ar.
A censura prévia é inaceitável e inconstitucional. Eis o que diz o artigo 220 da Carta Magna:
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
No regime militar, a ditadura mandava censores para as redações de jornal. Eles liam as reportagens programadas para o dia seguinte e, se notassem algo que fugisse às regras, determinavam que a reportagem fosse removida.
O novo regime do TSE é muito mais eficiente: o órgão decidiu dar poderes adicionais a si mesmo para decidir de ofício (sem ser provocado por alguma das partes) a respeito de conteúdo que deve ser removido. Aconteceu com a Jovem Pan, a Revista Oeste, a Brasil Paralelo e com incontáveis pessoas que, sem ocuparem cargos públicos, apenas expressaram opiniões nas redes sociais. O TSE censurou até mesmo um documentário que não chegou a ser lançado. É a censura prévia da censura prévia.
Se há alguma dúvida sobre a gravidade do caso, basta dizer que os excessos do TSE chamaram atenção até mesmo do jornal New York Times, tradicionalmente alinhado à esquerda: para o periódico, as medidas tomaram pelo TSE são muito mais intrusivas do que em outros países democráticos. O jornal afirma que a atuação de Alexandre de Moraes, ministro do STF e presidente do TSE, “gerou preocupação que seus esforços para proteger a democracia do país a tenham enfraquecido.”
Falta de imparcialidade é outro problema
A situação já seria grave se o Judiciário fosse formado apenas por pessoas ilibadas e sem qualquer vínculo político. Mas é ainda pior: boa parte dos membros das cortes mantêm uma proximidade com pessoas que podem vir a ser investigadas por eles. Presidente do TSE e relator do Inquérito das Fake News no STF, o ministro Alexandre de Moraes ocupou cargos no governo do PSDB em São Paulo. Em 2002, Moraes deixou a carreira de promotor de Justiça para se tornar Secretário da Justiça do governo de São Paulo. O responsável por lançar a carreira de Moraes no mundo político foi o então governador Geraldo Alckmin, que é o vice na chapa de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência. Até sua indicação ao STF, em 2017, Moraes era filiado ao PSDB.
Moraes passou cerca de dez anos de sua vida ocupando cargos políticos. E nenhum ano como juiz. Na condição de presidente do STF, ele julga diretamente as ações de seu ex-chefe e padrinho político. A situação de Moraes não é muito diferente da do ministro Antonio Dias Toffoli, que tem um longo histórico de ligação com o Partido dos Trabalhadores.
Impeachment de ministros do STF precisa ser discutido a sério
No Federalista n. 51, James Madison, um dos responsáveis pela Constituição dos Estados Unidos, escreve que o Legislativo é o poder mais poderoso em uma República. Faz sentido: dos três poderes, é o que tem a maior capacidade de representar a vontade da população.
Embora afirme que os poderes são isonômicos, a Constituição do Brasil parece concordar que, em casos extremos, é o Legislativo quem deve ter a palavra final. Basta dizer que o Legislativo pode cassar tanto o presidente da República quanto ministros do STF.
É, sim, preciso discutir a abertura de processos de impeachment contra ministros do Supremo Tribunal Federal que descumprem repetidamente suas obrigações constitucionais – caso de Alexandre de Moraes e de Luís Roberto Barroso, um entusiasta declarado do “ativismo Judicial” e um defensor da usurpação dos poderes do Legislativo. A possibilidade de cassação de ministros do STF está na Constituição e também na lei 1.079/1950, que trata do impeachment. Estes são os crimes de responsabilidade que podem levar um ministro do STF à perda de mandato:
Art. 39. São crimes de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal:
1- altera, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do Tribunal;
2 – proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa;
3 – exercer atividade político-partidária;
4 – ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo;
5 – proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decoro de suas funções.
Existem elementos para que alguns ministros do STF sejam responsabilizados pelos itens 2, 3, 4 e 5. Em especial, os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Justamente por isso, a abertura de processo de impeachment contra eles não seria golpe.
É fato que a cassação de ministros do STF pelo Senado seria uma atitude sem precedentes. Mas situações graves como a atual exigem medidas à altura. Demorou 126 anos até que um senador da República fosse cassado (o primeiro da lista foi Luis Estevão, em 2000). De lá para cá, outros dois juntaram-se a ele: Demóstenes Torres e Delcídio do Amaral. E a República continua de pé.
A abertura de um processo de impeachment contra um ministro do STF é uma atitude extrema, e que pode gerar instabilidade política. Mas talvez seja o momento de os representantes eleitos pela população tomarem uma atitude mais firme para impedir que juízes sem mandato popular acumulem poderes em desrespeito à Constituição.