Jurista, político e escritor, Ruy Barbosa ainda hoje é reverenciado como um dos mais enfáticos defensores da liberdade e da justiça no Brasil – além de um brilhante orador. O trecho abaixo faz parte de um de seus discursos mais famosos, feito quando ele era senador pelo estado da Bahia. Nele, Barbosa se queixa da decadência da moralidade pública no regime republicano.
“A falta de justiça, Srs. Senadores, é o grande mal da nossa terra, o mal dos males, a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo nosso descrédito, é a miséria suprema desta pobre nação.
A sua grande vergonha diante do estrangeiro, é aquilo que nos afasta os homens, os auxílios, os capitais.
A injustiça, Senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas.
De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto. Essa foi a obra da República nos últimos anos.
No outro regime, o homem que tinha certa nódoa em sua vida era um homem perdido para todo o sempre — as carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia uma sentinela vigilante, de cuja severidade todos se temiam e que, acesa no alto, guardava a redondeza, como um farol que não se apaga, em proveito da honra, da justiça e da moralidade gerais.
Na República os tarados são os tarudos. Na República todos os grupos se alhearam do movimento dos partidos, da ação dos Governos, da prática das instituições. Contentamo-nos hoje com as fórmulas e aparência, porque estas mesmo vão se dissipando pouco a pouco, delas quase nada nos restando.
Apenas temos os nomes, apenas temos a reminiscência, apenas temos a fantasmagoria de uma coisa que existiu, de uma coisa que se deseja ver reerguida, mas que, na realidade, se foi inteiramente. E nessa destruição geral das nossas instituições, a maior de todas as ruínas, Senhores, é a ruína da justiça, colaborada pela ação dos homens públicos, pelo interesse dos nossos partidos, pela influência constante dos nossos Governos. E nesse esboroamento da justiça, a mais grave de todas as ruínas é a falta de penalidade aos criminosos confessos, é a falta de punição quando se aponta um crime que envolva um nome poderoso, apontado, indicado, que todos conhecem, mas que ninguém tem coragem de apontá-lo à opinião pública, de modo que a justiça possa exercer a sua ação saneadora e benfazeja.
Mas, Sr. Presidente, nesta eliminação monstruosa do sentimento jurídico e da ação judicial nesse desenvolvimento rapidamente crescente do princípio de irresponsabilidade, dominando o princípio da responsabilidade – que é o princípio fundamental das instituições republicanas – porque a República é o governo dos homens sujeitos à lei, debaixo de uma responsabilidade inevitável, por seus atos; nessa eliminação da justiça pelos mais elementares de todos os princípios republicanos, o caso do Satélite avulta como o mais grave de todos os casos, como aquele em que a nossa honra maior enxovalho recebeu, em que a nossa dignidade se sentiu mais humilhada, em que os sentimentos de humanidade do país mais sofreram em que a nossa
civilização, diante do estrangeiro, maior ultraje padeceu.
Que é o que vos peço diante infelicidade nacional, Srs. Senadores? Venho a esta tribuna trovejar contra algum inocente? Pedir alguma cabeça à justiça? Venho pedir alguma vingança? Quero alguma desforra afrontosa inspirada por sentimentos apaixonados? Absolutamente. Eu venho implorar a abertura dos tribunais para o julgamento desse inqualificável atentado – e, antes de tudo, a abertura do grande tribunal da opinião pública pelo conhecimento desses papéis, que ninguém hoje pode ter interesse em esconder, senão os culpados, ainda vivos, dessas atrocidades inomináveis.”