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Padre Antônio Vieira, Sermão da Primeira Dominga da Quaresma (1653)

O Padre Antônio Vieira é um dos maiores oradores de língua portuguesa de todos os tempos, e uma das figuras mais interessantes do Brasil colonial.

Diante dos fiéis, no Maranhão, ele fez duríssimas à escravidão – especificamente a que vitimava os indígenas.

Neste sermão sobre o capítulo 4 do livro de Mateus, em que o diabo tenta a Jesus Cristo, ele faz um paralelo brilhante e aterrador: o diabo está disposto a dar o mundo por uma alma, e muitos de nós vendemos nossa alma a um preço desprezível.

A passagem abaixo é um trecho do sermão, selecionado pela equipe do Instituto Monte Castelo.

Padre Antônio Vieira (1608-1697)

“Suponhamos primeiramente que o Demônio no seu oferecimento falava verdade, e que podia e havia de dar o Mundo; suponhamos mais que Cristo não fosse Deus, senão um puro homem, e tão fraco, que pudesse e houvesse de cair na tentação. Pergunto: se este homem recebesse o Mundo todo, e ficasse senhor dele, e entregasse sua alma ao Demônio, ficaria bom mercador? Faria bom negócio? O mesmo Cristo o disse noutra ocasião: Quid prodest homini, si mundum universum lucretur, anima; vero suce detrimentum patiatur?: «Que lhe aproveita ao homem ser senhor de todo o Mundo, se tem a sua alma no cativeiro do Demônio»? Oh que divina consideração! Alexandre Magno e Júlio César foram senhores do Mundo; mas as suas almas agora estão ardendo no Inferno, e arderão por toda a eternidade. Quem me dera agora perguntar a Júlio César e a Alexandre Magno, que lhes aproveitou haverem sido senhores do Mundo, e se acharam que foi bom contrato dar a alma pelo aquirir! — Alexandre, Júlio, foi bom serdes senhores do Mundo todo, e estardes agora onde estais? Já que eles me não podem responder, respondei-me vós. Pergunto: Tomáreis agora algum de vós ser Alexandre Magno? Tomáreis ser Júlio César? — Deus nos livre! — Como, se foram senhores de todo o Mundo?! — É verdade, mas perderam as suas almas. — Oh cegueira! E para Alexandre, para Júlio César, parece-vos mau dar a alma por todo o Mundo; e para vós parece-vos bem dar a alma pelo que não é Mundo, nem tem de Mundo o nome? Sabeis de que nasce tudo isto? De falta de consideração; de não tomardes o peso à vossa alma. Quid prodest homini? «Que aproveita ao homem» lucrar todo o Mundo e perder a sua alma? Aut quam dàbit homo commutationem pro anima sua?: «Oh que cousa há no Mundo, pela qual se possa uma alma trocar?»

Todas as cousas deste Mundo têm outra por que se possam trocar. O descanso pela fazenda, a fazenda pela vida, a vida pela honra, a honra pela alma; só a alma não tem por que se trocar. E sendo que não há no Mundo cousa tão grande por que se possa trocar a alma, não há cousa no Mundo tão pequena e tão vil, por que a não troquemos e a não dêmos. Ouvi uma verdade de Sêneca, que por ser de um gentio, folgo de a repetir muitas vezes: Nihil est homini se ipso vilius: «Não há cousa para conosco mais vil, que nós mesmos». Revolvei a vossa casa, buscai a cousa mais vil de toda ela, e achareis que é vossa própria alma. Se vos querem comprar a casa, o canavial, o escravo ou o cavalo, não lhe pondes um preço muito levantado e não o vendeis muito bem vendido? Pois se a vossa casa, e tudo o que nela tendes, o não quereis dar senão pelo que vale; a vossa alma, que vale mais que o Mundo todo; a vossa alma, que custou tanto como o sangue de Jesus Cristo, porque a haveis de vender tão vil e baixamente? Que vos fez? Que vos desmereceu a triste alma? Não a tratareis sequer como o vosso escravo e como o vosso cavalo? Se vos perguntam, acaso, porque não vendeis a vossa fazenda por menos do que vale, dizeis que a não quereis queimar. E quereis queimar a vossa alma?! Ainda mal, porque a haveis de queimar e porque há-de arder eternamente.

Ora, Cristãos, não seja assim; aprendamos ao menos do Demônio a estimar nossa alma. Vejamos o que o Demônio hoje fez por uma alma alheia, para que nós nos corramos e confundamos do pouco que fazemos pelas próprias. Vai-se o Demônio ao deserto, está-se nele quarenta dias e quarenta noites, como se fora um anacoreta; e em todo este tempo esteve vigiando e espreitando ocasião, c tanto que a teve, não deixou pedra por mover para a conseguir. Vendo que não lhe sucedia, parte para Jerusalém, e sendo tão inimigo de Deus, vai-se ao Templo, para persuadir a Cristo que se arrojasse do pináculo: Mitte te deorsum; estuda livros, alega escrituras, interpreta salmos: Scriptum est enim, quia angelis suis mandavit de te, et in manibus tollent te, ne forte offendas ad lapidem pedem tuum. Resistido também aqui, e vencido segunda vez o Demônio, nem por isso desmaia: corre vales, atravessa montes, sobe ao mais alto de todos; e só por ver se podia fazer cair a Cristo, não repara em dar de uma só vez o Mundo todo. E que o Demônio faça tudo isto por uma alma alheia; e que façamos nós tão pouco pela própria! Que se ponha o DemóDemônionio quarenta dias em um deserto para me tentar; e que eu nos quarenta dias da Quaresma não tome um quarto de hora de retiro para lhe saber resistir! Que vigie o Demônio e espreite todas as ocasiões para me condenar; e que deixei eu passar tantas da minha salvação e ocasiões que, uma vez perdidas, não se podem recuperar! Que vá o Demônio ao templo de Jerusalém distante tantas léguas, para me despenhar ao pecado; e que tendo eu a igreja à porta, não me saiba ir meter em um canto dela, como o publicano, para chorar meus pecados! Que o Demônio, para me persuadir, estude e alegue os Livros Sagrados; e que eu não abra um só espiritual, para que Deus fale comigo, já que eu não sei falar com ele! Que o Demônio, vencido a primeira e segunda vez, insista, e não desmaie para me render, e que se comecei acaso alguma obra boa, à primeira dificuldade desista, e não tenha constância nem perseverança em nada! Que o Demônio, para me fazer cair, desça vales e suba montes; e que eu não dê um passo para me levantar, tendo dado tantos para me perder! Finalmente, que o Demônio, para granjear a minha alma, não repare em dar no primeiro lanço o Mundo todo; e que eu estime a minha alma tão pouco, que bastem os mais vis interesses do Mundo para a entregar ao Demônio! Oh miséria! Oh cegueira! A que diferente preço compra hoje o Demônio, as almas, do que oferecia por elas antigamente! Já nesta nossa terra, vos digo eu! Nenhuma feira tem o Demônio no Mundo, onde lhe saiam mais baratas; no nosso Evangelho ofereceu todos os reinos do Mundo por uma alma; no Maranhão não é necessário ao Demônio tanta bolsa para comprar todas; não é necessário oferecer mundos; não é necessário oferecer reinos; não é necessário oferecer cidades, nem vilas, nem aldeias. Basta acenar o Diabo com um tujupar de pindoba e dois Tapuias; e logo está adorado com ambos os joelhos: Si cadens adoraveris me. Oh que feira tão barata! Negro por alma; e mais negra ela que ele! Esse negro será teu escravo esses poucos dias que viver; e a tua alma será minha escrava por toda a eternidade, enquanto Deus for Deus. Este é o contrato que o Demônio faz convosco; e não só lho aceitais, senão que lhe dais o vosso dinheiro em cima!”